Aí pessoal, o link/endereço a seguir, nos leva a um texto de Eduardo Viveiros de Castro - mais uma dica da nossa professora Denise. Vale conferrir. Um abraço e boa leitura.
http://mail.google.com/mail/?ui=2&ik=f48b3f1281&view=att&th=121f9fb9687bba
54&attid=0.1&disp=vah&zw
sexta-feira, 19 de junho de 2009
terça-feira, 16 de junho de 2009
O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno
Aí galera! Parece que nosso blog vai começar a bombar. Mais uma contribuição, um texto de Eduardo Viveiros de Castro. Quem enviou o texto foi nossa colega gaúcha, arqueóloga, etc e tal que veio passar uns tempos nestas terras tucujús... valeu Vanderlise!!
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Ao contrário do que disse o Ministro Extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, a Amazônia não é uma "coleção de árvores". Estas existem nos hortos botânicos e nos jardins de palácios. A Amazônia é um ecossistema, uma floresta composta de árvores e uma infinidade de outras espécies vivas — inclusive seres humanos, que lá estão há pelo menos quinze mil anos. A Amazônia jamais foi um vazio humano antes da invasão européia; ao contrário, seu nadir demográfico foi alcançado após a invasão, com suas epidemias, seus massacres metódicos, seus descimentos forçados das populações nativas para fixação em missões e feitorias. E as populações indígenas encontraram, ao longo destes milênios de co-adaptação com o ecossistema amazônico (ou eco-sistemas - pois a Amazônia não é uma só, mas muitas), soluções de "sustentabilidade" infinitamente superiores ao processos truculentos e míopes de desmatamento com correntes, desfolhantes, motosserras e assim por diante. A floresta amazônica sempre foi povoada, e nunca foi, ou não é há mutos séculos, milênios talvez, "virgem" — a maioria das espécies úteis da floresta proliferou diferencialmente em função das técnicas indígenas de aproveitamento do território e de seus recursos. Mas do fato da floresta não ser mais virgem não se segue que seja legítimo estuprá-la. Pois é exatamente isso que se está fazendo.
A Amazônia está sim sofrendo um violento processo de agressão — e digo a Amazônia, não a tal coleção de árvores — a Amazônia inteira, suas populações tradicionais e suas miríades de espécies vivas. Um novo modelo de desenvolvimento, como tem sido reiteradamente pregado para o Brasil, , um que não seja a imitação simplória das receitas norte-européias, precisa ser um modelo que ponha a floresta no centro da equação — pois chegou-se a um momento da historia do planeta onde a vida é o valor em crise — a vida humana e não-humana. Não é mais possível fazer politica sem levar em consideração o quadro último em que toda politica real é feita, o quadro da imanência terrestre.
Usei a palavra imanência deliberadamente aqui. O ministro Mangabeira Unger falou em entrevista recente que o destino do homem é ser "grande, divino; não é ser uma criança aprisionada em um paraíso verde"; e que "todas as pessoas são espiritos que desejam transcender". Os índios concordariam com o senhor de que todas as pessoas são espíritos; talvez não concordassem com a idéia de que só os seres humanos são pessoas, mas este é um outro problema. Com certeza, porém, não concordariam com a idéia de que todos os espiritos ou pessoas "desejam transcender". Esta é uma afirmação que soaria aos ouvidos indígenas inquietantemente parecida com aquela que eles vieram ouvindo com tanta insistência durante os cinco séculos desde a chegada dos europeus — a afirmação de que eles são crianças que precisam ouvir a mensagem divina da transcendência para se tornarem seres humanos plenos, a saber, cristãos e bons cidadãos (i.e. com muita fé e nenhuma terra). Estou falando, naturalmente, da conversão e da catequese forçadas, às quais se juntaram, naturalmente também, a sujeição econômica e politica dos povos indígenas e uma história de etnocídio.
Os índios não estão "aprisionados em um paraíso verde" como disse o ministro. A Amazônia não é um paraíso; ao contrário, é uma laboriosa construção co-adaptativa, um sistema em equilíbrio dinâmico onde entrararam a engenhosidade técnica humana (indígena) e as infinitas engenhosidades naturais das espécies que ocupam a região. E os índios não estão aprisionados lá.
A idéia de que as populações indígenas precisam ser "liberadas", que Mangabeira Unger expôs em certo texto recente, parece-me visceralmente equivocada. Os índios que sofrem de depressão, suicidio, alcoolismo são justamente os índios que não dispõem de terras — os índios do MS por exemplo —, não os índios da Amazônia como os Yanomami, povo forte e feliz, justamente por gozar de um território à medida de suas necessidades vitais e espirituais. As áreas indígenas da Amazônia são as áreas menos desmatadas, são elas que detêm a devastação nas fronteiras do país; e elas são peça essencial no processo de regularização ou estabilização jurídica da situação fundiária caótica que é a Amazônia, o paraíso da grilagem, da pistolagem, do narcotráfico, do contrabando e do subsídio. A Amazônia tem hoje cerca de 20% de seu território desmatado — nas áreas indígenas, é menos de 1%. Em Rondônia, a situação é catastrófica. Em Roraima, o que temos são arrivistas (arrozeiros) vindos do Sul surfando na onda da ditadura (integrar para não entregar), que sustentam um sistema politico local baseado na corrupção generalizada e na exploração exetnsiva de áreas sem nenhuma incorporação significativa de mão de obra. E ainda querem culpar os índios.
O General Heleno levantou uma lebre inexistente, e se fez porta-voz dos interesses mais retrógrados, civilizacionalmente, que hoje cobiçam a Amazônia. E o problema da Amazônia, ou do desenvolvimento da Amazônia, não é a falta de idéias, mas o excesso de interesses — o conflito de interesses, nem todos interessantes para o país. A posição do governador de Mato Grosso, que conjuga de maneira éticamente miraculosa (meu primeiro eufemismo do dia) o papel de representante de um Estado da federação, seu maior agente econômico e seu principal devastador ecológico, é repugnante, sob todos os titulos.
Naturalmente, os índios sofrem de vários problemas, muitos deles causados pela incúria dos órgaos e agências de estado que deveriam fazer respeitar seus direitos constitucionais. Mas também não se pode negar que os índios conhecem outras dificuldades de adaptação às formas socioeconômicas (e espirituais) da sociedade nacional, não porque lhes faltem oportunidades (ainda que lhes faltem, em muitos casos), mas porque suas culturas e sociedades escolheram desde muito cedo na história um caminho civilizacional radicalmente distinto do nosso — o que chamei de via da imanência em lugar de via da transcendência. As culturas indígenas não estão fundadas no princípio de que a essência do ser humano é o desejo e a necessidade. Seu modo de vida, seu "sistema" de vida, no sentido mais radical possível, é outro. Os índios não rezam pelo sistema econômico-teológico ocidental que consiste em tirar das pessoas o que elas têm e fazê-las desejar o que não têm – sempre. Outro nome desse princípio é "capitalismo", ou "desenvolvimento econômico". Esta é a teologia bíblica da falta e da queda, da insaciabilidade infinita do desejo humano perante os meios materiais finitos de satisfazê-los.
O desenvolvimento é sempre suposto ser uma necessidade antropológica, exatamente porque ele supõe uma antropologia da necessidade: a infinitude subjetiva do homem – seus desejos insaciáveis – em insolúvel contradição com a finitude objetiva do ambiente – a escassez dos recursos. Estamos no coração da economia teológica do Ocidente, como tão bem mostrou Marshal Sahlins; na verdade, na origem de nossa teologia econômica do "desenvolvimento". Mas essa concepção econômico-teológica da necessidade é, em todos os sentidos, desnecessária. O que precisamos é de um conceito de suficiência, não de necessidade. Contra a teologia da necessidade, uma pragmática da suficiência. Contra a aceleração do crescimento, a aceleração das transferências de riqueza, ou circulação livre das diferenças; contra a teoria economicista do desenvolvimento necessário, a cosmo-pragmática da ação suficiente. Os índios são os senhores da imanência. Que transcendência temos nós, os orgulhosos brasleiros, supostos representantes da Razão e da Modernidade, a oferecer a eles, neste desanimador começo de século? É mais fácil os índios nos libertarem que nós irmos libertar a eles. Pelo menos em espirito.
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Ao contrário do que disse o Ministro Extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, a Amazônia não é uma "coleção de árvores". Estas existem nos hortos botânicos e nos jardins de palácios. A Amazônia é um ecossistema, uma floresta composta de árvores e uma infinidade de outras espécies vivas — inclusive seres humanos, que lá estão há pelo menos quinze mil anos. A Amazônia jamais foi um vazio humano antes da invasão européia; ao contrário, seu nadir demográfico foi alcançado após a invasão, com suas epidemias, seus massacres metódicos, seus descimentos forçados das populações nativas para fixação em missões e feitorias. E as populações indígenas encontraram, ao longo destes milênios de co-adaptação com o ecossistema amazônico (ou eco-sistemas - pois a Amazônia não é uma só, mas muitas), soluções de "sustentabilidade" infinitamente superiores ao processos truculentos e míopes de desmatamento com correntes, desfolhantes, motosserras e assim por diante. A floresta amazônica sempre foi povoada, e nunca foi, ou não é há mutos séculos, milênios talvez, "virgem" — a maioria das espécies úteis da floresta proliferou diferencialmente em função das técnicas indígenas de aproveitamento do território e de seus recursos. Mas do fato da floresta não ser mais virgem não se segue que seja legítimo estuprá-la. Pois é exatamente isso que se está fazendo.
A Amazônia está sim sofrendo um violento processo de agressão — e digo a Amazônia, não a tal coleção de árvores — a Amazônia inteira, suas populações tradicionais e suas miríades de espécies vivas. Um novo modelo de desenvolvimento, como tem sido reiteradamente pregado para o Brasil, , um que não seja a imitação simplória das receitas norte-européias, precisa ser um modelo que ponha a floresta no centro da equação — pois chegou-se a um momento da historia do planeta onde a vida é o valor em crise — a vida humana e não-humana. Não é mais possível fazer politica sem levar em consideração o quadro último em que toda politica real é feita, o quadro da imanência terrestre.
Usei a palavra imanência deliberadamente aqui. O ministro Mangabeira Unger falou em entrevista recente que o destino do homem é ser "grande, divino; não é ser uma criança aprisionada em um paraíso verde"; e que "todas as pessoas são espiritos que desejam transcender". Os índios concordariam com o senhor de que todas as pessoas são espíritos; talvez não concordassem com a idéia de que só os seres humanos são pessoas, mas este é um outro problema. Com certeza, porém, não concordariam com a idéia de que todos os espiritos ou pessoas "desejam transcender". Esta é uma afirmação que soaria aos ouvidos indígenas inquietantemente parecida com aquela que eles vieram ouvindo com tanta insistência durante os cinco séculos desde a chegada dos europeus — a afirmação de que eles são crianças que precisam ouvir a mensagem divina da transcendência para se tornarem seres humanos plenos, a saber, cristãos e bons cidadãos (i.e. com muita fé e nenhuma terra). Estou falando, naturalmente, da conversão e da catequese forçadas, às quais se juntaram, naturalmente também, a sujeição econômica e politica dos povos indígenas e uma história de etnocídio.
Os índios não estão "aprisionados em um paraíso verde" como disse o ministro. A Amazônia não é um paraíso; ao contrário, é uma laboriosa construção co-adaptativa, um sistema em equilíbrio dinâmico onde entrararam a engenhosidade técnica humana (indígena) e as infinitas engenhosidades naturais das espécies que ocupam a região. E os índios não estão aprisionados lá.
A idéia de que as populações indígenas precisam ser "liberadas", que Mangabeira Unger expôs em certo texto recente, parece-me visceralmente equivocada. Os índios que sofrem de depressão, suicidio, alcoolismo são justamente os índios que não dispõem de terras — os índios do MS por exemplo —, não os índios da Amazônia como os Yanomami, povo forte e feliz, justamente por gozar de um território à medida de suas necessidades vitais e espirituais. As áreas indígenas da Amazônia são as áreas menos desmatadas, são elas que detêm a devastação nas fronteiras do país; e elas são peça essencial no processo de regularização ou estabilização jurídica da situação fundiária caótica que é a Amazônia, o paraíso da grilagem, da pistolagem, do narcotráfico, do contrabando e do subsídio. A Amazônia tem hoje cerca de 20% de seu território desmatado — nas áreas indígenas, é menos de 1%. Em Rondônia, a situação é catastrófica. Em Roraima, o que temos são arrivistas (arrozeiros) vindos do Sul surfando na onda da ditadura (integrar para não entregar), que sustentam um sistema politico local baseado na corrupção generalizada e na exploração exetnsiva de áreas sem nenhuma incorporação significativa de mão de obra. E ainda querem culpar os índios.
O General Heleno levantou uma lebre inexistente, e se fez porta-voz dos interesses mais retrógrados, civilizacionalmente, que hoje cobiçam a Amazônia. E o problema da Amazônia, ou do desenvolvimento da Amazônia, não é a falta de idéias, mas o excesso de interesses — o conflito de interesses, nem todos interessantes para o país. A posição do governador de Mato Grosso, que conjuga de maneira éticamente miraculosa (meu primeiro eufemismo do dia) o papel de representante de um Estado da federação, seu maior agente econômico e seu principal devastador ecológico, é repugnante, sob todos os titulos.
Naturalmente, os índios sofrem de vários problemas, muitos deles causados pela incúria dos órgaos e agências de estado que deveriam fazer respeitar seus direitos constitucionais. Mas também não se pode negar que os índios conhecem outras dificuldades de adaptação às formas socioeconômicas (e espirituais) da sociedade nacional, não porque lhes faltem oportunidades (ainda que lhes faltem, em muitos casos), mas porque suas culturas e sociedades escolheram desde muito cedo na história um caminho civilizacional radicalmente distinto do nosso — o que chamei de via da imanência em lugar de via da transcendência. As culturas indígenas não estão fundadas no princípio de que a essência do ser humano é o desejo e a necessidade. Seu modo de vida, seu "sistema" de vida, no sentido mais radical possível, é outro. Os índios não rezam pelo sistema econômico-teológico ocidental que consiste em tirar das pessoas o que elas têm e fazê-las desejar o que não têm – sempre. Outro nome desse princípio é "capitalismo", ou "desenvolvimento econômico". Esta é a teologia bíblica da falta e da queda, da insaciabilidade infinita do desejo humano perante os meios materiais finitos de satisfazê-los.
O desenvolvimento é sempre suposto ser uma necessidade antropológica, exatamente porque ele supõe uma antropologia da necessidade: a infinitude subjetiva do homem – seus desejos insaciáveis – em insolúvel contradição com a finitude objetiva do ambiente – a escassez dos recursos. Estamos no coração da economia teológica do Ocidente, como tão bem mostrou Marshal Sahlins; na verdade, na origem de nossa teologia econômica do "desenvolvimento". Mas essa concepção econômico-teológica da necessidade é, em todos os sentidos, desnecessária. O que precisamos é de um conceito de suficiência, não de necessidade. Contra a teologia da necessidade, uma pragmática da suficiência. Contra a aceleração do crescimento, a aceleração das transferências de riqueza, ou circulação livre das diferenças; contra a teoria economicista do desenvolvimento necessário, a cosmo-pragmática da ação suficiente. Os índios são os senhores da imanência. Que transcendência temos nós, os orgulhosos brasleiros, supostos representantes da Razão e da Modernidade, a oferecer a eles, neste desanimador começo de século? É mais fácil os índios nos libertarem que nós irmos libertar a eles. Pelo menos em espirito.
Gêneses waiãpi, entre diversos e diferentes
Mais uma contribuição da nossa professora Denise! O texto é de
Dominique Tilkin Gallois, professora do Departamento de Antropologia – USP
Sigam o link e tenham uma bela leitura!
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-77012007000100002&
script=sci_arttext
Estruturas elementares de reciprocidade: uma nota comparativa sobre o pensamento sócio-político nas Guianas, Brasil Central e Noroeste Amazônico
Pessoal, este é um dos textos prometidos por Denise. Vale lembrar que o texto é de Joanna Overing e a tradução de Renato Sztutman - PPGAS/USP.
Um grande abraço e ótima leitura para todos!
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Em seu trabalho, A sociedade contra o Estado (1977), Pierre Clastres afirmou que a sutileza e a profundidade da filosofia política indígena, tal como aquela da recusa do desenvolvimento de poder coercitivo, neutraliza a “virulência” da autoridade política (1977:35) e permite as instituições igualitárias distinguir estas sociedades como agora as conhecemos. Clastres sugeriu que é a sofisticação filosófica (embora inconsciente) dos indígenas que o conduz a identificar o poder à natureza, ou seja, a uma força que deve permanecer externa à sociedade. Muito brevemente, o argumento de Clastres era de que a cultura, apreendendo o poder como o ressurgimento da natureza propriamente dita, nega ambos por atestar a predominância do princípio de reciprocidade, a dimensão primária ontológica da sociedade indígena, contra a qual se opõem tanto o poder como a natureza. Enquanto concordo com Clastres que o aceitamento do poder coercitivo em substância poderia bem impor uma rejeição da reciprocidade, o princípio mais básico para uma política igualitária, desejo afirmar que os índios identificam o poder coercitivo, não às forças da natureza, mas às forças da cultura, seus produtos, e seu controle. Não é a natureza que a sociedade indígena está rejeitando, mas uma propriedade das forças da cultura que permitiriam o uso coercitivo ou violento delas e que iriam impor, entre outros controles, o controle sobre a atividade econômica e seus produtos. Na medida em que uma sociedade indígena atinge o ápice de tal rejeição, ela é uma sociedade sem economia política , onde ninguém em um papel político pode ordenar o trabalho alheio ou os frutos deste.
Na literatura recente, vemos que existe variação considerável na organização social das sociedades indígenas Sul-americanas das Terras Baixas, entre os Jê do Brasil Central, aqueles do Noroeste Amazônico e aqueles das Guianas. Assim, em face disso, minha interpretação pode parecer por demais genérica, bem como poderia ser no final. Nas sociedades Jê e Bororo do Brasil Central, o entendimento indígena da sociedade como processo dentro de um específico esquema cosmológico de coisas é acessado espacialmente diante de nossos olhos no lay-out circular ou semi-circular de suas aldeias e na sua vida ritual: as classificações dicotômicas da realidade são exibidas na sua vida cerimonial, e cada aldeia é dividida por um sistema de metades, ou por séries de sistemas de metades, opostas por classificação diádica e entre as quais relações elaboradas de complementaridade lógica são ritualmente suprimidas, tornadas formais por meio da cerimônia de maneiras complicadas (ver Lave, 1979, da Matta, 1979, Melatti, 1979, Crocker, 1970, Maybury-Lewis, 1979). No Noroeste Amazônico, princípios de estrutura social são da mesma forma visíveis a olho nu, mas em grau distinto: há uma segmentação da anaconda ancestral, da cabeça à cauda, que acessa o padrão conceitual da segmentação territorial do rio pelos patri-sibs alinhados de um grupo exogâmico, que forma unidades de troca com patri-sibs de grupos exogâmicos de origem diferente na anaconda. Quando comparada à organização social altamente ritualizada das sociedades do Brasil-Central e ao lay-out bem conceitualizado das aldeias do Noroeste Amazônico, os grupos de parentesco endogâmicos dos índios das Guianas aparecem fluidos e amorfos em sua forma. Nas Guianas, não existem figurações espaciais complexas refletindo a ordem da vida social; não há grupos de nominação, metades em trocas rituais umas com as outras, refletindo cerimonialmente uma visão particular do ordenamento cosmológico ou expressando um eterno ordenamento do “outro mundo” pelo passado mítico. Não há ritual para declarar o elaborado intercruzamento das unidades pelas quais a sociedade está comprimida. À primeira vista, os grupos sociais guianeses são atomísticos, dispersos e altamente fluidos na forma.
Uma regra prescritiva de casamento associada às variações de um tipo dravidiano de terminologia de relação é, no mais do nosso conhecimento, universal aos grupos indígenas das Guianas (ver, por exemplo, Rivière sobre organização Caribe, 1974a; Overing Kaplan sobre os Piaroa, 1972 e 1975; Lizot sobre os Yanomami, 1971). Por toda a região das Guianas, a união privilegiada, no sentido que Lévi-Strauss dá ao termo (1969:120), se dá dentro do próprio grupo local, então identificado como uma unidade de parentes (kinsmen) próximos (ver Rivière, 1969; Henley, 1979; Albert sobre os Yanomami in Ramos e Albert, 1977; Overing Kaplan, 1981). O grupo local tradicional comumente convive em uma grande casa comunal enquanto um grupo de parentesco cognático endogâmico. O pertencimento à casa é normalmente baseado em um princípio de afinidade, devendo um adulto casar-se dentro da casa, tendo lá afins e permanecendo, assim, lá integrado. Classifiquei previamente sua estrutura como um “grupo de parentesco baseado na aliança” (1973, 1975), aquele que se mantém como unidade de cognatos pela restrição ideal da troca no interior dela mesma. Sua unidade enquanto tal grupo é associada ao número de trocas maritais entre homens no interior do próprio grupo local (Overing Kaplan, 1984).
Como já disse em outro momento (1984), é irônico que nas várias sociedades onde a regra prescritiva de casamento é de esmagadora importância à organização dos seus grupos locais não haja evidência de uma organização dual por meio da qual o ritual ou mesmo a vida social possam ser realizados, enquanto na organização de relações de metade nas sociedades Jê e Bororo, a troca de mulheres entre metades assume um papel relativamente menor no entendimento indígena da interação de metades (lave, 1979; da Matta, 1979; Melatti, 1979; Crocker, 1979; Maybury-Lewis, 1979). Nas Terras Baixas Sul-americanas, a organização dual não é frequentemente associada a uma regra prescritiva de casamento, e, de fato, a presença de tal regra não implica, em hipótese alguma, a presença de uma organização dual. Este contraste - que de um lado, há sociedades com organizações duais mas não regras prescritivas de casamento; de outro, há aquelas que têm uma regra prescritiva de casamento mas nenhuma evidência de uma organização dual - vai ser pertinente para a discussão seguinte a propósito da variação que encontramos entre sociedades na elaboração de princípios de troca no interior delas. Meu argumento é que sob tal contraste, há um princípio unitário de sociedade; o contraste na organização meramente reflete os vários modos, nos quais uma filosofia semelhante da vida social pode ser expressa por meio de “estruturas elementares de reciprocidade”.
Assim, devo afirmar que apesar do grande contraste na organização das sociedades do Brasil Central e do Noroeste Amazônico em relação àquelas das Guianas e de suas estruturas sociais muito dessemelhantes, reside uma filosofia similar de existência social que implica também um entendimento particular do poder político e do controle sobre as forças da cultura, ou dos recursos escassos no mundo, que tal poder poderia impor. O princípio da vida social ao qual estou me referindo é a idéia de que a sociedade pode existir apenas na medida em que existe contato e mistura apropriada entre entidades e forças que são diferentes umas das outras (ver Overing Kaplan,1977 e 1981). Hesito aqui em falar de “dualismos subjacentes”, preferindo “diferença” como termo para descrever o princípio metafísico que estou reivindicando como princípio de ordenamento comum a todas essas sociedades. Afirmo ainda que na teoria indígena, a “diferença” está associada ao perigo, sendo ela entendida, em última instância, como variação do conjunto de forças da cultura, e o poder em geral como controle. Em suma, a existência social é identificada tanto com a diferença quanto com o perigo, e, inversamente, a existência a-social (p.e. o mundo depois da morte) com a identidade e a segurança. É por esta razão que os índios colocam tanta ênfase na vida social a partir da mistura apropriada de elementos e forças, que devem, por necessidade, ser diferentes uns dos outros para que a sociedade exista: é apenas por meio de tal mistura “apropriada” que a segurança pode ser adquirida na sociedade e o perigo afastado. Finalmente, segurança na sociedade se torna nada mais que “reciprocidade completa”, em contraste com a incompleta, onde forças perigosas umas às outras se encontram perigosamente (ver Overing Kaplan, 1984).
Tais princípios são expressos abertamente nas cosmogonias dos Piaroa e do Noroeste Amazônico e na vida cerimonial do Brasil Central: não foi por análise estrutural que cheguei às minhas conclusões. A medida pela qual grupos Caribe dão expressão aberta no ritual ou na cosmologia para uma teoria que equaciona sociedade com diferença e perigo, com a reunião de forças culturais diferentes em origem, é um tópico a ser explorado. Se tal discurso não parece imediatamente evidente, devo não obstante acrescentar que a estrutura social Caribe em seu ideal de união endogâmica promove uma afirmação encoberta destes princípios que poderiam bem ser acentuados de forma mais óbvia em outras sociedades de florestas tropicais.
Os Piaroa e os índios das Guianas em geral fazem o seu melhor para que a organização do grupo local suprima as diferenças pelas quais a sociedade é composta, enquanto as culturas Jê, Bororo e do Noroeste Amazônico enfatizam-nas. O reconhecimento de tal variação entre os índios na sua exibição social da diferenciação cultural, ou, ao contrário, a supressão disto, leva a um longo caminho no entendimento da variação nas estruturas sociais dos grupos indígenas das Terras Baixas Sul-americanas. Entre os Jê, os Bororo e os índios do Noroeste-Amazônico, as forças da cultura são socialmente controladas, como evidenciado pelos princípios relativamente formais de organização social típicos dessas sociedades mencionadas acima. As estruturas sociais atomísticas usuais nas Guianas e a natureza informal dos agrupamentos sociais guianeses são, sugeriria eu, recém-saídas de uma filosofia do individualismo que é fortemente expressa por estes índios, uma filosofia que contrasta os índios das Guianas em geral com os vizinhos mais “sócio-centrados” do Sul, que colocam certos tipos de controle nas mãos da sociedade. Nas Guianas, tais controles são responsabilidade do indivíduo.
Para os Piaroa, e provavelmente para outros índios guianeses também, as forças da cultura, a-sociais na origem, são domesticadas no interior do indivíduo que tem a responsabilidade de controlar privadamente, dentro dele, todas as forças culturais que ele leva consigo. A ênfase Piaroa na responsabilidade do indivíduo sobre tais forças não é senão um aspecto de uma filosofia sutil de individualismo que é extrema em qualquer escala pela qual ela pode ser medida (ver Lukes, 1973): esta assume um papel excessivamente importante no pensamento social Piaroa, como suspeito ser, da mesma forma, o caso dos falantes da língua Caribe das Guianas que também enfatizam o auto-controle e a responsabilidade individual. Segundo Melatti (1979:67), entre os Krahó, falantes da língua Jê do Brasil Central, uma pessoa (tomada aqui em sua substância física), quando submetida a um elaborado ritual, recebe uma outra roupagem de identidade cultural que, por sua vez, fornece ao indivíduo identidade social. Como contraponto, entre os Piaroa, o social, a cultura e suas forças — incluindo o nome próprio — fazem parte de uma roupagem interna, cuja natureza é privada, envergonhada para revelar e domesticada por uma única pessoa. Como devo ilustrar abaixo, o controle social do “eu” (self) não é senão uma parte de um conjunto mais amplo de idéias que os Piaroa guardam sobre auto-identidade, a composição do “eu” (self) e a domesticação dos elementos (forças) de que é composto.
O controle social das forças da cultura: exemplos do Brasil Central e do Noroeste Amazônico
Etnógrafos das sociedades Jê setentrionais (Melatti, 1979; Lave, 1979; da Matta, 1979) observam que estes índios relacionam suas complexas instituições sociais a um complicado conjunto de crenças ligadas à transmissão-baseada- nos-nomes de identidades sociais dos doadores de nomes aos receptores de nomes. É por meio de tal transmissão de nomes, cada conjunto de nomes visto como um todo imutável, que a continuidade da sociedade é compreendida. Grupos portadores de nomes são descritos por estes autores como unidades coorporadas adquirindo, em sua perpetuação, não apenas conjuntos de nomes, mas também ritos, parafernália ritual e locações de grupos rituais (ver Overing Kaplan, 1981). Em outras palavras, os conjuntos de nome dividem entre si os recursos escassos da sociedade que são, eu diria (tomando a evidência acentuada no caso Bororo), as forças da cultura: forças que permitem a saúde, a riqueza e a fertilidade da terra e da comunidade, e, neste sentido, forças doadoras de vida (e destruidoras de vidas) do mundo. Para os Jê setentrionais, a transmissão do nome carrega consigo a transmissão da afiliação cerimonial, o conhecimento esotérico e os direitos e obrigações rituais: em sua aquisição, o nome fornece ao indivíduo uma identidade social e, assim sendo, transforma-o em membro de um grupo social que possui uma porção das forças da cultura disponíveis no mundo.
A observação de longe a mais clara sobre o controle social das forças culturais nas sociedades do Brasil Central foi dada por Crocker (1979) sobre os Bororo. A sociedade Bororo, como representada na aldeia, é composta de metades exogâmicas, cada qual com quatro “matri-clans” que permanecem em ordem espacial fixa, distanciando-se umas das outras ao redor do círculo da aldeia. A resultante divisão da aldeia em oito partes corresponde à divisão em oito seções das forças do cosmos. Todos os nomes das coisas do universo estão divididas entre os oito matri-clans que possuem como propriedade de clã um oitavo dos nomes das coisas no mundo e sua força, o aroe corporado, ou “essência categórica” de cada elemento possuído. Na topografia do mundo subterrâneo, o mundo dos aroe, todas as “entidades totêmicas” (sua força?) e os membros mortos de um clã singular vivem juntos na clareira geográfica alocada por aquele clã, um arranjo espacial que é replicado na aldeia. Assim, as forças da cultura, os recursos escassos possuídos por cada clã, têm sua fonte em baixo da terra. A mais valiosa riqueza do clã, suas próprias “representações dos espíritos”, são dadas como presentes aos clãs da metade oposta para serem performatizados pelos seus membros. Cada clã deve realizar sua responsabilidade categórica e ritual em relação aos outros clãs, representando uma das oito categorias pelas quais o universo é classificado.
Como é verdade para os grupos portadores de nomes Jê e para os clãs Bororo, o sib Pirá-Piraná do Noroeste Amazônico também controla os recursos rituais e seu próprio conjunto de nomes pessoais (Hugh-Jones, C., 1979; HUgh-Jones, S. , 1979). Como com os Bororo, as forças da cultura possuídas socialmente — por cada sib — têm sua fonte nas profundezas da terra, onde estão alojadas em “casas de despertar”, as casas de pedra dos sibs localizadas no mundo subterrâneo de onde as almas do novo nascido vêm e para onde vão as almas dos mortos. É no contexto da propriedade por cada clã de seu próprio estoque de nomes pessoais, reciclados em cada geração alternativa juntamente com almas que vivem na “casa de despertar” do clã, que podemos parcialmente entender o puzzling hallmark das sociedades do Noroeste Amazônico: em exceção dos Cubeo, os índios do Noroeste Amazônico casam-se idealmente exogamicamente com seu próprio grupo linguístico, sendo a língua de uma pessoa herdada de seu pai. Christine Hugh-Jones acrescenta (1979) que a língua deveria ser considerada como parte da propriedade do grupo de descendência, juntamente com a parafernália ritual. Sendo assim, cada grupo exogâmico - um conjunto de sibs que descende de uma anaconda ancestral e que tem a mesma filiação linguística - tem seu próprio estoque de nomes das coisas no mundo. O aroe corporado, tótens nomeados, de um clã Bororo compreende um oitavo do universo, enquanto entre os índios do Noroeste Amazônico, cada grupo exogâmico “possui” um vocabulário especial idiossincrático a si mesmo que cobre todos os ítens no mundo. Pode bem ser que o controle sobre um conjunto específico de nomes para coisas imponha para estes índios um poder particular sobre essas coisas ou um acesso à sua força (ver Overing Kaplan, 1981).
Christine Hugh-Jones também nos conta (1979) que é geralmente assim entre os índios do Noroeste Amazônico para o casamento ser explicitamente exogâmico não somente em relação ao grupo linguístico e de linhagem, mas também para a associação de habitat, uma identificação conferida pelo pertencimento ao sib e explicada pelos mitos de origem. No tempo mítico, o sol primal deu luz a três anacondas, associadas respectivamente com os domínios do céu, da terra e da água, e que são os ancestrais dos três grupos exogâmicos intercasáveis. Por meio do intercasamento de membros destes grupos, a sociedade veio à existência, cada grupo tendo origem nas fontes do poder advindas de diferentes domínios cósmicos. A distinção entre habitats cósmicos maiores, e as forças associadas com cada um, torna-se ao menos para alguns índios do Noroeste Amazônico uma distinção radical entre igualdade e diferença, fornecendo a língua para a discussão da identidade e diferença em relações sociais, e como tal tem um grau gritante de força classificatória no ordenamento da troca matrimonial e da vida ritual do Vaupés.
Nas sociedades do Noroeste Amazônico, aqueles do mesmo grupo exogâmico são identificados ao habitat de domínio particular, enquanto afins são associados a um outro. O fato da semelhança e da diferença serem expressas na língua do domínio do habitat sugere o reconhecimento claro de um controle, de base econômica, sobre forças. A cosmogonia Piaroa, ao contar sobre a criação do mundo, a origem da cultura e os elementos naturais da terra, conta também das batalhas que ocorreram no despertar de tais criações entre os dois grandes demiurgos do tempo mítico, afins um ao outro, sobre os elementos de forças dos domínios de habitat, cada qual respectivamente responsável pela criação, e então, pela apropriação. Cada um desejava o controle sobre as forças do outro, bem como a apropriação do domínio do outro. Na cosmogonia e teogonia Piaroa, há um reconhecimento explícito dos sérios perigos ao homem social do poder que tenta se apropriar dos produtos do universo, pois é um poder que rapidamente se torna coercitivo, violento e incontrolado na sua expressão. Ao mesmo tempo, como no Noroeste Amazônico, a cosmogonia associa afinidade à diferença, diferença em fonte de origem e em tipo de poderes adquiridos. A mensagem mítica é que a interação de tais diferenças, enquanto um pré-requisito para a vida social, é potencialmente e altamente perigosa para esta: é um perigo que emerge quando a reciprocidade entre afins permanece incompleta (p. e. via roubo de um pelo outro, via incesto) e pode ser apenas evitado por meio da expressão cuidadosa da reciprocidade entre eles. Os perigos da afinidade são tão grandes que os Piaroa suprimem linguisticamente e socialmente uma classificação que colocaria ênfase nas diferenças subjacentes e necessárias para a relação afim e, desta forma, também para a ordem social. Assim, entre os Piaroa, não há associação simples de uma classificação de habitats significantes com regras de casamento e identificação grupal: a classificação dos domínios e suas forças tão importantes para a cosmogonia não é reprojetada sobre o sistema matrimonial, tampouco fornece um meio de identificar grupos sociais.
Os Piaroa, assim como as culturas do Noroeste Amazônico, dão muita ênfase nos casamentos dos primeiros conjuntos de pessoas; pois é por meio destes intercasamentos dos primeiros homens e mulheres Piaroa, cujas origens se deram no interior dos seus lugares separados de criação “acima” e “abaixo” da terra, que a sociedade veio a ser, e por meio da qual todos os Piaroa se tornaram hoje cognatas. Entretanto, o pertencimento clânico de um indivíduo não o obriga, de forma alguma, nesta vida. Seu clã é sua origem e a casa para a qual ele voltará após a morte. Os Piaroa acreditam que no pós-vida, os membros de cada clã vivam juntos em um estabelecimento espacialmente separado de todos os outros clãs - separado dos afins, dos animais, de todos os seres diferentes de si. Conceitualmente, trata-se de algo semelhante à terra Bororo de aroe e às “casas de despertar” dos Pirá-Piraná, mas ao contrário dos Bororo e das casas clânicas do Noroeste Amazônico, abaixo da terra os clãs do pós-vida Piaroa são casas sem qualquer cultura (ta’kwarü). Portanto, nenhuma força de vida nem de cultura pode ser deduzida pelo Piaroa vivo de sua fonte de origem; nada pode vir naturalmente a ele, pois trata-se de um lugar desprovido de poder. Da mesma forma, para os Piaroa, as distinções espaciais do pós-vida e da criação são acentuadamente não replicadas na vida social onde, por meio de intercombinações, os clãs perderam completamente sua distintividade espacial e social.
A classificação de habitats significantes é usada politicamente, onde as distinções de diferença essencial são ativamente expressas por competidores políticos para estruturar suas batalhas individuais. Antes de discutir a supressão, na vida social Piaroa, da diferença, que apesar de suprimida é necessária à ordem social, e à sua expressão no reino do político, devo descrever brevemente aspectos da cosmogonia Piaroa, visando esclarecer a recente discussão (ver Overing, “The paths of sacred words”, apresentado no seminário “Xamanismo nas Terras Baixas Sul-Americanas” no 44o. Congresso Internacional de Americanistas, 1982, em Manchester, para um relato detalhado tanto sobre a cosmogonia quanto sobre o sistema clãnico Piaroa).
Cosmogonia Piaroa: violência e caos primeiros
Ricoeur nota em seu trabalho, The symbolism of evil (1969:178) que “o mal é tão velho quanto o mais velho dos seres; o mal é o passado do ser”. Como nos mitos das civilizações antigas a que Ricoeur se refere, a mitologia Piaroa também conta de uma violência de poder que está inscrita na origem das coisas; trata-se de um princípio de violência que estabiliza enquanto destrói (ver Ricoeur, 1969:182-3). Os poderes incontrolados e plenos envolvidos no trabalho da criação são provados demasiado destrutivos, selvagens e venenosos para permanecerem livres como forças ilimitadas dentro de um mundo social. Para que a ordem criada por eles permaneça intacta, esses poderes possantes, ao final do tempo mítico, foram banidos do mundo do social para outros mundos onde estão agora instalados sob segurança relativa de forma separada da sociedade, onde sua maldade, ou sua potencialidade para o mal, pode ser mais facilmente controlada.
Antes dos mundos celestial e terrestre serem criados, todas as fontes de poder do universo estavam instaladas abaixo da superfície da Terra, sua face ainda não construída. No tempo mítico, na medida em que estes poderes subterrâneos se tornaram, vagarosamente, desgovernados na Terra, era a sua força a responsável pela criação de todos os elementos e seres do universo superficial e pelo conhecimento que permitia alguma forma de existência. A maioria dos poderes responsáveis pela forma e vida da superfície terrestre vinha da terra subterrânea de Ofo/ Da’a, uma quimérica Tapir/Anaconda. Foi por meio de dois grandes míticos afins, Kuemoi e Wahari, cujos nascimentos foram o feito de Ofo/ Da’a e cujos poderes que ele lhes deu, que a maioria dos elementos do mundo dos Piaroa foi criado. Os poderes que o Tapir/Anaconda transmitiu a estes dois demiurgos eram distintos em origem e opostos em resultado. Estas eram forças que Kuemoi, mestre do domínio aquático, trazia, do lugar de seu nascimento, à superfície da Terra em uma cultura aquática (p. e., o cultivo de plantas, o fogo de cozinhar, ornamentos, poderes de caça-curare, pós de caça de feitiçaria, venenos de peixe, cachorro caçador); enquanto Wahari, o mestre da selva, criava a topografia da Terra, seus elementos naturais (suas montanhas, suas rochas, seus sistemas fluviais, suas quedas). As forças do Tapir/Anaconda associadas com estes dois conjutos de criação, aquele da cultura oposta àquele dos elementos naturais da Terra e seu céu, eram diferentes em qualidade, se não em força. Os poderes de Kuemoi eram venenosos e malignos em sua selvageria, enquanto os poderes de Wahari eram relativamente controlados e benevolentes em sua força. A oposição entre selvageria e controle se encontra refletida no tipo de seres, cada qual responsável pela criação, na medida em que o tempo mítico prosseguia — seres que não eram senão aspectos de seus respectivos poderes e, como tais, ajudantes nas contínuas batalhas de poder, praticadas entre estes dois mais poderosos feiticeiros do tempo mítico.
A fonte da cultura na Terra, cultura nas suas origens, era então das forças venenosas e selvagens de Kuemoi, dadas a ele na forma de alucinógenos venenosos pelo seu pai, Ofo/ Da’a. Embora mestre da cultura e do cultivo, Kuemoi criou todas as cobras venenosas e insetos do mundo. Ele envenenou todas as grandes formações rochosas e as correntes. Ele é o avô das feridas, o pai do peixe mordedor e venenso e criador do sapo venenoso. Ele é também o avô do sono e o mestre da escuridão. O crocodilo, o cayman e o peixe perigoso são da família de Kuemoi, como o são também o esquilo e o abutre, o primeiro anuncia um perigo e o último, é um predador de animais selvagens. Em suma, todos os animais que mordem e que apresentam perigo e todas as coisas venenosas neste mundo, sendo classificados como “animais selvagens” (dea ruwa), uma categoria que inclui os próprios Piaroa, são da família ou da criação de Kuemoi e são classificados juntos como “pensamentos de Kuemoi”. Assim, na cosmogonia Piaroa, a cultura é do poder incontrolado e venenoso de Kuemoi e tem sua fonte na loucura de Kuemoi. Como provedor de cultura àqueles da selva (p.e. os Piaroa e Wahari antes deles), seu “presente” é venenoso, tão selvagem quanto os seus próprios poderes — loucos — de feitiçaria. Mesmo seus filhos, as plantas do jardim, são venenosos.
A cultura, feita dos poderes venenosos e loucos da escuridão é parcialmente domada pelas forças da luz que criaram os elementos naturais (inanimados) do universo. Wahari, genro de Kuemoi e mestre da selva, gasta muito do tempo mítico não só tentando roubar cultura de Kuemoi, mas também para transformar seus estragos em forças mais controladas e mais eficazes para seu uso seguro pelos seres da selva. Como o poder de Kuemoi está fora de controle, Wahari representa o poder sob controle. A força de seus atos espetaculares de criação foram derivadas de um alucinógeno não-venenoso dado pelo Tapir/Anaconda enquanto habitava a casa subterrânea de seu nascimento. Como criador da maioria das características da Terra, Wahari foi chamado de o “mestre do mundo”. Enquanto Kuemoi era o mestre das trevas e da noite, Wahari era o mestre da luz — seu poder colocava o sol no céu. Ele era também o mestre dos animais selvagens, então humanos na forma, e mestre de sua casa. Ele criou por meio de seus pensamentos todos os animais rupestres e pássaros da selva; ele também criou os Piaroa do peixe que ele pescou nos seus lagos de origem. Ele era um voador: sempre transformava-se em “passáros cantadores” e águia (hawk), produtos de seu próprio pensamento, para fazer o fantástico, para voar grandes distâncias sobre a Terra e dentro dela, assim, em contraste com Kuemoi, que também se transformava em aspectos de seus próprios pensamentos (p.e. os predadores, jaguar e abutre).
Como grandes feiticeiros, Kuemoi e Wahari representam o fracionamento na Terra dos poderes de Ofo/Da’a, o deus supremo Tapir/Anaconda, cuja casa se encontrava abaixo da superfície terrestre. Wahari casou-se com a filha de Kuemoi. Por meio do intercasamento destes dois grandes poderes, opostos pela sua associação com distintos domínios do cosmos — sua origem dentro d’água e dentro da terra —, relações sociais vieram à existência e a fertilidade do deus Tapir/Anaconda passou a ser expressa na Terra como sociedade, ou, mais precisamente, conduziu à emergência do estado social em tempos míticos. Entretanto, a relação afim então estabelecida permaneceu desleal, manifestando uma não-reciprocidade gritante. Como mencionado acima, a maioria dos mitos Piaroa relata os duelos enfrentados entre esses dois demiurgos sobre os elementos, as forças e os domínios que o outro era responsável pela criação e controle. Kuemoi, o mestre da água, queria como comida animais selvagens, enquanto Wahari estava sempre esperto para escapar das armadilhas venenosas que Kuemoi tramava para ele e sua família. Por sua vez, Wahari, queria cultura. Foi somente com seu casamento com Maizze, a filha de Kuemoi, que ele recebeu o presente de plantas cultivadas e seu processamento. Depois de tê-la desposado, Wahari dispendeu muito do tempo mítico restado roubando artefatos culturais de Kuemoi e tentando domá-los para seu uso próprio. No final, ele roubou artefatos culturais e rituais, possuídos pelos “pais” dos animais selvagens.
Toda a cultura que Wahari recebeu ou roubou é agora dada aos Piaroa, uma de suas próprias criações; mas, hoje, eles não mais recebem forças da cultura de Wahari. No final do tempo mítico, Wahari matou Kuemoi em retaliação por invasões canibalísticas em seu domínio na selva. Wahari foi então morto por membros de sua própria família em vingança pelos seus pecados a-sociais, especialmente pelo incesto com sua irmã, Cheheru. (Kuemoi reincarnou na Terra como anaconda, e Wahari como tapir). Ambos, então, foram mortos por sua irresponsabilidade social. Ambos perderam os presentes dados pelo seu criador Tapir/Anaconda — as forças selvagens da cultura e as forças para domesticá-la — para outros seres, deuses que agora vivem uma existência etérea sob as quedas d’água de suas casas celestiais. É destes deuses que os Piaroa recebem os conhecimentos e os poderes da cultura. Estas forças fortes estão hoje instaladas fora do mundo terrestre, onde a vida social é levada — forças demasiadamente destrutivas — de forma selvagem e venenosa para permanecer livre como as forças ilimitadas dentro do mundo social. Os poderes de Wahari e Kuemoi vivem no interior de caixas de cristal dos deuses, que agora possuem estas forças.
As lições do passado mítico ilustram que nenhuma vida social ordenada seria possível se tais forças vagassem livremente. Sua existência desregrada contínua encorajaria, como feito no tempo mítico, atos de canibalismo, incesto, loucura e furto — todas compulsões sociais simulando as regras de reciprocidade (e resultando em tranquilidade) a partir das quais, na visão Piaroa, para a sua continuidade, a sociedade é dependente. Como será discutido abaixo, o mais apropriado, ou melhor dito, a relação de troca segura é aquela reciprocada, e é apenas por meio da reciprocidade repetida que o sério perigo instrínseco à relação afim (in-law) pode ser contornado, que o perigo da diferença essencial pode ser negada. Por outro lado, para que a sociedade continue, as forças da cultura devem ainda ser parte dela, tanto para lhe dar vida, como para protegê-la.
O indivíduo e a domesticação da cultura
Vimos antes que nas sociedades Bororo e do Noroeste Amazônico, as forças culturais pertencem a clãs e sua fonte permanece propriedade clânica, onde está instalada abaixo do Terra no interior das casas primordiais de cada clã. Em contraste, entre os Piaroa, as forças da cultura não pertencem a grupo social algum, mas aos deuses, e são trazidas de volta à sociedade por meio da iniciativa individual e a partir da responsabilidade do indivíduo. É dos deuses que as forças têm permissão para dar vida (ta’kwarü), a “vida dos pensamentos e da cultura”, ao mesmo tempo para o indivíduo que vive em sociedade e para a sociedade em si. Tais forças são trazidas à sociedade por meio da capacidade do xamã que domestica sua selvageria, por instalá-las no interior de suas contas de conhecimento, ou ajuda os outros a fazer o mesmo. A cultura deve ser domesticada dentro do indivíduo.
Os Piaroa em geral dão muito valor à habilidade de conduzir uma vida tranquila (adiupàwi). O primeiro ensinamento formal a que uma criança é submetida consiste em lições dadas pelo xamã de como viver tranquilamente com os outros: são lições sobre controle. Os Piaroa consideram tal treinamento como parte de um processo de “domesticação”. A criança deve adquirir cada vez mais responsabilidade pessoal (ta’kwakwomena) para suas próprias ações, ela deve controlar as forças da cultura na medida em que estas lhe são presentes. Conforme se cresce, deve-se decidir por si mesmo quantos e quais poderes — tais como caça, pesca, canto ou feitiçaria — se pode suportar das fontes indomesticadas dentro de si mesmo. Esses poderes são adquiridos por meio da liderança do xamã conhecedor que as apreende cautelosamente em seus vôos às casas dos deuses. Na medida em que o indivíduo cresce, ele recebe dos deuses uma quantidade maior de contas, sendo no interior dessas que os poderes da cultura levados são instalados e assim domesticados. O estado interior de alguém, com a minoria dos poderes incorporados, torna-se mais complicado conforme elementos externos o penetram tanto no seu desejo como na ausência deste (doença). A roupagem interior do xamã é claramente elaborada especialmente, e desta forma é ele que deve exibir o maior controle: o controle apropriado das emoções implica apaziguamento das forças culturais que habitam o interior de uma pessoa. Sentimentos viciosos, intentos malignos e ciúmes são aborrecedores, mas não considerados prejudiciais no homem que tomou para si poucos poderes dos deuses; enquanto essas características em um xamã, consideradas como resultado da carência de domesticação apropriada dos poderes potencialmente selvagens e malignos, são compreendidas como altamente perigosas ao bem-estar da sociedade, uma indicação do poder cultural incontrolado no seu interior que pode matá-lo, causar desastres naturais, prevenir o aumento de animais e causar a infertilidade da terra.
As forças da cultura, inseridas em alguém, não impõem uma propriedade do seu produto, mas impõem a habilidade ou a capacidade de usá-lo.O xamã enquanto líder político, e como aquele que tem dentro dele domesticada uma quantidade de força de cultura maior que de qualquer homem comum, ainda não tem tal conotação de propriedade. Hoje, os mestres da terra e da água possuem os domínios da água e da selva. Eles não são Wahari e Kuemoi, mas o espírito da selva, Re’yo, e o espírito da água, Ahe Itamu, dos quais adquirem seu controle sobre esses habitats no fim do tempo mítico. Estes dois espíritos guardam seus respectivos domínios, os protegem, fazem férteis os seus habitantes, e punem aqueles que ameaçam suas formas de vida. Eles também cooperam como guardiães da comida do jardim. O ponto relevante é obviamente que os habitats de terra e água, e seus produtos, não são possuídos por homens. Tal controle não é parte do escopo do poder político na sociedade Piaroa, um controle que deveria ser visualizado pelos Piaroa como poderes realmente muito perigosos. O líder xamã não tem poder para ordenar o trabalho de outros. Durante as grandes cerimonias que ele apresenta, ele convida os outros a trabalharem para ele e para a comunidade, ele nunca ordena tal trabalho. É sua obrigação controlar e lutar contra as forças selvagens da cultura que adentram a sociedade, mas não controlar (ao menos abertamente) o comportamento social de indivíduos de sua comunidade; cada qual devendo administrar seu próprio controle pessoal, um assunto privado em que se deve manter domesticadas as forças da cultura as capacidades para esta no interior de si mesmo.
Política, afinidade e classificação mítica
A mensagem mítica, e os Piaroa entendem isso neste sentido, equaciona sociedade e sua possibilidade com a afinidade, com a combinação de ítens diversos. A sociedade existe apenas por meio da interação de entidades e forças que são potencialmente e altamente perigosas umas às outras: a relação entre doadores e receptores de mulheres é inerentemente ameaçadora, uma vez que os afins “incorporados” (in-laws) são estranhos que podem te comer ou te roubar. Ora, o perigo oferecido por esta relação de afinidade (in-law relationship) só pode ser apaziguado através da reciprocidade apropriada. Reconhecendo que a sociedade pode existir apenas por meio da interação das diferenças, de seres distintos uns dos outros, e entendendo que tal mistura traz bastante riscos, os Piaroa despendem uma boa porção de energia social estrutural no mascaramento dos princípios de diferença visando a segurança adquirida. Mas aqui, a cautela está na ordem, pois esta é uma observação que, de forma alguma, dá conta do comportamento de todos os Piaroa: as relações afins são veladas no interior da casa comunal (itso’de), e acentuadas na relação entre casas no interior de um território político (Overing Kaplan, 1984).
Mantendo a visão de que a sociedade pode vir a ser somente por meio da coexistência de forças dessemelhantes, a relação jural na sociedade Piaroa é com os afins (in-laws) e as relações políticas são expressas no idioma da afinidade (Overing Kaplan, 1975). A competição política se dá por uma categoria afim, mas jamais com uma classificada como “pai”, “irmão” ou “filho”. Como escrevi em outro lugar (1975), um homem Piaroa se estabelece como afim — na categoria de “sogro”, “cunhado” ou “genro” — em relação à maioria de homens no interior de seu território. Classificando-os de tal modo, ele pode competir com eles como xamãs, bem como negociar casamentos para seus filhos ou germanos. Em batalhas políticas, dentro do território, símbolos cosmológicos de poder fornecem as condições semânticas por meio das quais os competidores estruturam sua competição. Como xamãs eles podem, através do poder de alucinógenos, transformarem-se, como fizeram os demiurgos no tempo mítico: eles também podem se transformar em águias, anacondas, cobras, jaguares, trovões, crocodilos e abutres. Cada tipo de transformação distingue um tipo e ordem específicos de poder. Algumas transformações são de Kuemoi, e como tais são manifestações de poder que são ao mesmo tempo malignas e descontroladas. Outros são transformações de Wahari, aquelas cujo poder é aquele do vôo, e não do comer os outros. Em competição política, dá-se a seu componente — “cunhado”, “sogro” e “genro” classificatórios — os atributos de Kuemoi. Seu poder é poder fora de controle: ele se utiliza de alucinógeno venenosos; ele se transforma em anaconda, tornando-se assim Kuemoi — como sua reincarnação na Terra; ou, ele se transforma em jaguar, que é ao mesmo tempo o animal de estimação de Kuemoi e sua manifestação como caçador. O oponente é um feiticeiro que envia uma doença fatal, tornando na sua ação canibal, tal como era Kuemoi: doença é sempre considerada pelos Piaroa como um processo de ser comido (ver Overing Kaplan, 1982).
Tal uso da classificação mítica na estruturação das batalhas de poder entre casas dentro do território não implica um ordenamento que é metafórico em natureza, mas antes fala de estados metafísicos específicos. Sob efeito de drogas alucinógenas, um xamã vê-se transformado em um belo Wahari, e vê seu oponente transformado em Kuemoi. O xamã entende tais visões como verdade literal, e age com eles desta forma. A metáfora se converte em uma ontologia que explicitamente diz que o “fantástico” é verdadeiro.
Tal linguagem — e transformações — tirada das classificações dos elementos e forças do cosmos tal como existiam no tempo mítico, não devem ser usados para estruturar relações dentro da casa: não se deve jamais frisar a diferença essencial de um afim, uma vez que se vive com ele. Se a competição política na casa torna-se séria em natureza, a casa imediatamente sofre uma fissão. Assim, é o afim potencial que é Kuemoi, o canibal, o portador de forças culturais indomadas. Ele é aquele com quem nenhuma troca matrimonial foi contratada, ou com quem os laços de afinidade concreta são fracos. O doador da doença, o canibal, é aquele com quem se está em uma relação de reciprocidade incompleta ou, ainda, reciprocidade negativa. A relação entre afins concretos que vivem juntos na casa não deve ser modelada a partir da relação que vigia na sociedade mítica entre dois arquetípicos afins que eram inimigos uns dos outros (ver Overing Kaplan, 1984).
Os Piaroa classificam suas relações com outros em um continuum que se move do perigo à segurança, e da diferença à identidade. Esta não é uma classificação tão incomum, uma escala crescente de empatia social, mas há alguns aspectos interessantes pertinentes a esta discussão da sua classificação dos outros por categorias que denotam vários graus de distância e proximidade social. As relações mais distantes e perigosas são aquelas com animais e membros de outras tribos, com quem os Piaroa nutrem uma relação de predação: o perigo é o da morte, tanto para os Piaroa, através de suas ações, quanto para os animais e estrangeiros (via feitiçaria). Porque eles têm o direito de matar os membros de ambas as categorias e enfraquecê-los os Piaroa estão em uma relação de não-parentesco com eles. Eles não são chamados “afins”. A maioria das mortes entre os Piaroa são causadas por feiticeiros de outras tribos, e a vingança Piaroa a tais mortes através daquilo que os jovens se referem como “a bomba Piaroa”, uma mágica de vingança poderosa combinando venenos potentes e certas partes da anatomia da vítima que são queimadas juntas e enviadas pela fumaça e pelo canto ao território do feiticeiro, onde mortes em massa são o resultado. A relação, em excessão daquela com o parceiro ocasional de comércio, é de uma reciprocidade negativa gritante.
Menos perigosas, mas ainda ameaçadoras, são as relações com membros de outros territórios Piaroa. Aqui, não há uma relação natural de morte ou de transmissão de doença; por sua vez, o perigo é de morte social, permanecendo a relação sob reciprocidade negativa. Viaja-se a outros territórios e leva-se comidas, ou pior, mulheres, que não podem ser reciprocadas, e então abandona-se o lugar. Em exceção do comércio formal, as demandas de reciprocidade não podem ser encontradas. Para não enfrentar o problema, os indivíduos com quem alguém interage são sempre classificados como “parentes”, e não “afins”, uma classificação que carrega a conotação da extrema segurança meio às ameaças de uma terra estranha, da comida estranha e das pessoas estranhas.
No território, onde homens classificam mais homens de outros grupos locais como afins, há sempre a potencialidade de adquirir com eles a relação de reciprocidade, de estabelecer uma relação confiável de troca. Tais transações com afins potenciais são por definição de reciprocidade incompleta, e o perigo primário é que tais relações possam se degenerar no equivalente às relações intertribais e territoriais, relações de reciprocidade negativa.
As relações mais seguras são, claramente, aquelas no interior do grupo local de alguém, tanto com afins quanto com parentes que lá vivem. A casa, não obstante, não pode existir como unidade autônoma; para o poder xamânico e para os cônjuges, deve depender de outras casas, apesar de uma ideologia que preza por sua autonomia. A classificação de todos os homens dentro do território como afins pode ser parcialmente entendida como reconhecimento dessa dependência: é apenas por meio da afinidade que a reciprocidade pode ser ativada. Vemos, pois, que no continuum que se move do perigo à segurança e da diferença à identidade, também ao mesmo tempo se move da reciprocidade negativa à reciprocidade potencial e finalmente à reciprocidade completa, sendo a intensidade da última relação tão extrema que quase se aproximou da empatia, ou em termos de Sahlins (1972), “reciprocidade generalizada”. Segurança com o afim concreto é parcialmente adquirida por meio de reciprocidade apropriada, e é por esta razão que a troca matrimonial entre os Piaroa é firmemente baseada sobre um princípio de reciprocidade levado adiante através da repetição serial e múltipla de laços afins.
O casamento endogâmico e a afinidade múltipla (ver Overing Kaplan, 1981)
Para os Piaoa, a sociedade passa a existir pela associação de elementos dessemelhantes: tanto a história mitológica quanto a ordenação cosmológica dão esta mensagem (ver acima a discussão dos clãs mortuários, onde não se vive nem com afins, nem com cultura). É este entendimento sobre a natureza das coisas no mundo social e cultural que os Piaroa fazem seu melhor para ignorar nas suas relações dentro da casa comunal. Se os Piaroa usassem a classificação mítica do domínio da terra e da água como linguagem de ordenamento de suas trocas matrimoniais — como no contrário se dá entre os índios do Noroeste Amazônico — ou mesmo a distinção “acima” ou “abaixo” subjacentes ao seu sistema de metades, eles estariam também afirmando abertamente que os afins reais são criaturas essencialmente diferentes umas das outras e como tais, podem devorar-se mutuamente. Assim, para ignorar tais divisões há um método de burlar os perigos da diferença, de mascarar os elementos e forças pelos quais a sociedade é composta, ou, se desejar, qualquer dualismo no qual deve consistir. Os Piaroa não desejam aceitar as implicações disponíveis do reconhecimento da diferença essencial, sendo por meio de seu ideal muito forte de casamento endogâmico que eles são capazes de entender a necessidade da diferença essencial à vida social no grupo local. O dispositivo mais óbvio que eles usam, ignorando a diferença em relação à sua finalidade que é a segurança, é o casamento com um aparentado próximo ou ao menos bem conhecido de dentro da casa; e este ideal de endogamia de grupo local, tão enfatizado pela maioria dos índios guianeses, não é senão o outro lado da moeda de seu medo igualmente acentuado do estranho (ver, por exemplo, Rivière, 1969a; Henley, 1979).
Escrevi em outro lugar (1973, 1975) que as maiores casas entre os Piaroa, nas quais habitam quase todos da parentela conjugal de cada membro, fazem, ao menos em um nível ideológico, aproximar o ideal de uma parentela endogâmica. A grande ficção é, claramente, que a sociedade como grupo endogâmico isolado que se replica através do tempo se torna composta da associação de ítens “similares”, consanguíneos que são seguros uns aos outros, e não perigosos, como os “diferentes” afins. Aqui, temos com os Piaroa, uma interessante dialética entre sociedade como um mundo ideal de parentelas endogâmicas e sociedade que inclui o todo mais amplo: afins potenciais e oponentes políticos.
O casamento endogâmico não implica somente segurança, mas também a manutenção de todos em casa com aparentados próximos, tornando fluida a distinção entre “parente” e “afim”; trata-se do casamento reciprocado, pois por meio deste os laços prévios de afinidade no grupo são reafirmados. Na teoria Piaroa, quanto mais trocas matrimoniais decretadas entre dois afins, mais segura a relação e mais unificado o grupo como unidade de cognatas. É um tipo de troca matrimonial frequentemente encontrada nas Guianas (ver Rivière, 1969a; Henley, 1979; Arvelo-Jiménez, 1971), em que a viabilidade da relação de afinidade, a aliança política e a unidade do grupo são correlacionados com o número de trocas matrimoniais estabelecidas entre homens dentro do grupo local. Teoricamente, a reduplicação de qualquer laço de afinidade dentro do grupo — como quando um conjunto de irmãos se casa com um conjunto de irmãs — é ao mesmo tempo um casamento replicado e reciprocado, do ponto de vista do grupo como um todo. Dentro de um grupo endogâmico, o laço matrimonial não precisa ser diretamente reciprocado como na troca de irmão/irmã: qualquer casamento dentro do grupo é ao menos indiretamente reciprocado, tal como na troca indireta, na medida em que todo homem dentro do grupo recebe uma esposa de dentro deste. Em um certo sentido, através do casamento endogâmico, noção cara de troca matrimonial, e seus perigos, foram apagados. Ironicamente, é por meio da troca matrimonial, especialmente aquela redecretada de tempos em tempos dentro da casa, o presente continuamente retornado, que as diferenças são anuladas e a segurança adquirida. Se visualizarmos a reciprocidade, como faz Lévi-Strauss (1969:84), como o meio mais imediato de integrar a oposição entre o eu e os outros, os Piaroa por meio do casamento endogâmico, têm levado este princípio ao seu extremo lógico, uma vez que aí o eu e os outros não são apenas unificados, mas tornados todos um só tipo.
Assim, a sociedade é para os Piaroa equacionada com a afinidade, a conjunção de ítens diversos (afins) e forças culturais. A endogamia se torna uma filosofia da sociedade para eles, um “meio caminho”, que supera até um certo ponto os perigos do estado social e o ditado que acentua que a sociedade só pode existir pela conjunção de elementos perigosos e diferentes. Em suma, a endogamia como ideal expressa o medo Piaroa em relação ao estado social, tornando-se então um princípio subjacente à sociedade suspeita de sua própria natureza social.
Conclusão: estruturas elementares de reciprocidade (ver Overing Kaplan, 1981)
Acredito ser possível afirmar, em geral para os índios da floresta tropical, que suas noções de reciprocidade apropriada e desapropriada impõem uma filosofia do relacionamento com coisas que são diferentes. É desta perspectiva que podemos chegar a um mais claro entendimento da proliferação dos dualismos dentro dessas culturas, não importando o que eles contêm ou como eles são expressos. Temos entre os Piaroa a expressão cosmológica de desafio, que eu creio ser geral aos índios das Terras Baixas Sul-americanas e de considerável importância para um entendimento de certas ambiguidades no ordenamento dos seus universos sociais, o que pontua a necessiddae das diferenças à vida social — em última instância, diferenças nas forças da cultura; mas trata-se de um mundo, onde a conjunção de tais diferenças implicam medo, enquanto a convivência de elementos e forças semelhantes implica segurança e não-sociedade, ou seja, uma existência a-social.
Tanto os Bororo como os Jê evitam os perigos da diferenciação cultural através de transações rituais elaboradas entre metades, por meio das quais “vias rituais” são estabelecidas entre grupos de nome (ver, por exemplo, Crocker, 1979; da Matta, 1979; Lave, 1979; Melatti, 1979). Através das inversões rituais comuns a estes sistemas, onde o “eu” se torna “outro” e o “outro” se torna o “eu” — onde o chefe de uma metade é escolhido pelo outro ou a representação ritual dos tótens de uma metade é encenada pelos outros —, a identidade e a diferença entre categorias culturais (e sociais) se tornam tão indistintas quanto por meio do casamento endogâmico das Guianas. Em cada uma destas sociedades, os princípios de troca são até certo ponto princípios metafísicos, em que a ênfase não é dada muito na obtenção de um tipo particular de formação grupal, mas na aquisição de relações apropriadas entre seres de categorias que são vistas como significativamente diferentes, necessários uns aos outros, para que a sociedade exista. Tais princípios de troca também expressam uma filosofia política específica que diz que homem algum, grupo algum, ou qualquer conjunto desses, pode exercer propriedade única sobre as forças das cultura.
Se as distinções expressas referidas à lógica classifcatória de nomes, aos atribtuos simbólicos de habitats cósmicos, ou, como no caso clássico do “parente” e “afim”, ou ao “casável” e “não-casável” como implicado por uma regra prescritiva de casamento, em cada exemplo, tais contrastes são empregados na elaboração de trocas que são claramente “elementares” na forma, mas uma elaboração que é em última instância cultural na derivação, e não social. J. C. Crocker comenta (1979:296-297), quando fala da elaboração de estruturas entre os Jê e os Bororo, que categorias encontradas em outras fontes de distinções que aquelas advindas de uma regra prescritiva de casamento, “podem possuir precisamente as mesmas implicações inexoráveis para a interação social que deve exprimir um modelo lógico como a mais rigidamente prescritiva “estrutura elementar”. Invés de “sistemas elementares de parentesco e casamento”, podemos falar mais genericamente de “estruturas elementares de reciprocidade”, e neste sentido tratar as sociedades indígenas das Guianas, sociedades do Noroeste Amazônico e do Brasil Central como alguns dos muitos exemplos de uma estrutura básica.
As implicações para a vida social indígena do ordenamento das estruturas elementares de reciprocidade é que a sociedade em si se torna uma lógica para a manutenção do balanço, uma relação apropriada entre ítens culturais no universo que permite a sociedade se perpetuar. A reciprocidade em si pode assim ser igualmente vista como um modo particular de auto-perpetuação, não de grupos — que podem impor o controle coercitivo tanto de pessoas como de recursos escassos —, mas de relações, uma perpetuação que se contrapõe ao desenvolvimento de tal controle.
Um grande abraço e ótima leitura para todos!
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Em seu trabalho, A sociedade contra o Estado (1977), Pierre Clastres afirmou que a sutileza e a profundidade da filosofia política indígena, tal como aquela da recusa do desenvolvimento de poder coercitivo, neutraliza a “virulência” da autoridade política (1977:35) e permite as instituições igualitárias distinguir estas sociedades como agora as conhecemos. Clastres sugeriu que é a sofisticação filosófica (embora inconsciente) dos indígenas que o conduz a identificar o poder à natureza, ou seja, a uma força que deve permanecer externa à sociedade. Muito brevemente, o argumento de Clastres era de que a cultura, apreendendo o poder como o ressurgimento da natureza propriamente dita, nega ambos por atestar a predominância do princípio de reciprocidade, a dimensão primária ontológica da sociedade indígena, contra a qual se opõem tanto o poder como a natureza. Enquanto concordo com Clastres que o aceitamento do poder coercitivo em substância poderia bem impor uma rejeição da reciprocidade, o princípio mais básico para uma política igualitária, desejo afirmar que os índios identificam o poder coercitivo, não às forças da natureza, mas às forças da cultura, seus produtos, e seu controle. Não é a natureza que a sociedade indígena está rejeitando, mas uma propriedade das forças da cultura que permitiriam o uso coercitivo ou violento delas e que iriam impor, entre outros controles, o controle sobre a atividade econômica e seus produtos. Na medida em que uma sociedade indígena atinge o ápice de tal rejeição, ela é uma sociedade sem economia política , onde ninguém em um papel político pode ordenar o trabalho alheio ou os frutos deste.
Na literatura recente, vemos que existe variação considerável na organização social das sociedades indígenas Sul-americanas das Terras Baixas, entre os Jê do Brasil Central, aqueles do Noroeste Amazônico e aqueles das Guianas. Assim, em face disso, minha interpretação pode parecer por demais genérica, bem como poderia ser no final. Nas sociedades Jê e Bororo do Brasil Central, o entendimento indígena da sociedade como processo dentro de um específico esquema cosmológico de coisas é acessado espacialmente diante de nossos olhos no lay-out circular ou semi-circular de suas aldeias e na sua vida ritual: as classificações dicotômicas da realidade são exibidas na sua vida cerimonial, e cada aldeia é dividida por um sistema de metades, ou por séries de sistemas de metades, opostas por classificação diádica e entre as quais relações elaboradas de complementaridade lógica são ritualmente suprimidas, tornadas formais por meio da cerimônia de maneiras complicadas (ver Lave, 1979, da Matta, 1979, Melatti, 1979, Crocker, 1970, Maybury-Lewis, 1979). No Noroeste Amazônico, princípios de estrutura social são da mesma forma visíveis a olho nu, mas em grau distinto: há uma segmentação da anaconda ancestral, da cabeça à cauda, que acessa o padrão conceitual da segmentação territorial do rio pelos patri-sibs alinhados de um grupo exogâmico, que forma unidades de troca com patri-sibs de grupos exogâmicos de origem diferente na anaconda. Quando comparada à organização social altamente ritualizada das sociedades do Brasil-Central e ao lay-out bem conceitualizado das aldeias do Noroeste Amazônico, os grupos de parentesco endogâmicos dos índios das Guianas aparecem fluidos e amorfos em sua forma. Nas Guianas, não existem figurações espaciais complexas refletindo a ordem da vida social; não há grupos de nominação, metades em trocas rituais umas com as outras, refletindo cerimonialmente uma visão particular do ordenamento cosmológico ou expressando um eterno ordenamento do “outro mundo” pelo passado mítico. Não há ritual para declarar o elaborado intercruzamento das unidades pelas quais a sociedade está comprimida. À primeira vista, os grupos sociais guianeses são atomísticos, dispersos e altamente fluidos na forma.
Uma regra prescritiva de casamento associada às variações de um tipo dravidiano de terminologia de relação é, no mais do nosso conhecimento, universal aos grupos indígenas das Guianas (ver, por exemplo, Rivière sobre organização Caribe, 1974a; Overing Kaplan sobre os Piaroa, 1972 e 1975; Lizot sobre os Yanomami, 1971). Por toda a região das Guianas, a união privilegiada, no sentido que Lévi-Strauss dá ao termo (1969:120), se dá dentro do próprio grupo local, então identificado como uma unidade de parentes (kinsmen) próximos (ver Rivière, 1969; Henley, 1979; Albert sobre os Yanomami in Ramos e Albert, 1977; Overing Kaplan, 1981). O grupo local tradicional comumente convive em uma grande casa comunal enquanto um grupo de parentesco cognático endogâmico. O pertencimento à casa é normalmente baseado em um princípio de afinidade, devendo um adulto casar-se dentro da casa, tendo lá afins e permanecendo, assim, lá integrado. Classifiquei previamente sua estrutura como um “grupo de parentesco baseado na aliança” (1973, 1975), aquele que se mantém como unidade de cognatos pela restrição ideal da troca no interior dela mesma. Sua unidade enquanto tal grupo é associada ao número de trocas maritais entre homens no interior do próprio grupo local (Overing Kaplan, 1984).
Como já disse em outro momento (1984), é irônico que nas várias sociedades onde a regra prescritiva de casamento é de esmagadora importância à organização dos seus grupos locais não haja evidência de uma organização dual por meio da qual o ritual ou mesmo a vida social possam ser realizados, enquanto na organização de relações de metade nas sociedades Jê e Bororo, a troca de mulheres entre metades assume um papel relativamente menor no entendimento indígena da interação de metades (lave, 1979; da Matta, 1979; Melatti, 1979; Crocker, 1979; Maybury-Lewis, 1979). Nas Terras Baixas Sul-americanas, a organização dual não é frequentemente associada a uma regra prescritiva de casamento, e, de fato, a presença de tal regra não implica, em hipótese alguma, a presença de uma organização dual. Este contraste - que de um lado, há sociedades com organizações duais mas não regras prescritivas de casamento; de outro, há aquelas que têm uma regra prescritiva de casamento mas nenhuma evidência de uma organização dual - vai ser pertinente para a discussão seguinte a propósito da variação que encontramos entre sociedades na elaboração de princípios de troca no interior delas. Meu argumento é que sob tal contraste, há um princípio unitário de sociedade; o contraste na organização meramente reflete os vários modos, nos quais uma filosofia semelhante da vida social pode ser expressa por meio de “estruturas elementares de reciprocidade”.
Assim, devo afirmar que apesar do grande contraste na organização das sociedades do Brasil Central e do Noroeste Amazônico em relação àquelas das Guianas e de suas estruturas sociais muito dessemelhantes, reside uma filosofia similar de existência social que implica também um entendimento particular do poder político e do controle sobre as forças da cultura, ou dos recursos escassos no mundo, que tal poder poderia impor. O princípio da vida social ao qual estou me referindo é a idéia de que a sociedade pode existir apenas na medida em que existe contato e mistura apropriada entre entidades e forças que são diferentes umas das outras (ver Overing Kaplan,1977 e 1981). Hesito aqui em falar de “dualismos subjacentes”, preferindo “diferença” como termo para descrever o princípio metafísico que estou reivindicando como princípio de ordenamento comum a todas essas sociedades. Afirmo ainda que na teoria indígena, a “diferença” está associada ao perigo, sendo ela entendida, em última instância, como variação do conjunto de forças da cultura, e o poder em geral como controle. Em suma, a existência social é identificada tanto com a diferença quanto com o perigo, e, inversamente, a existência a-social (p.e. o mundo depois da morte) com a identidade e a segurança. É por esta razão que os índios colocam tanta ênfase na vida social a partir da mistura apropriada de elementos e forças, que devem, por necessidade, ser diferentes uns dos outros para que a sociedade exista: é apenas por meio de tal mistura “apropriada” que a segurança pode ser adquirida na sociedade e o perigo afastado. Finalmente, segurança na sociedade se torna nada mais que “reciprocidade completa”, em contraste com a incompleta, onde forças perigosas umas às outras se encontram perigosamente (ver Overing Kaplan, 1984).
Tais princípios são expressos abertamente nas cosmogonias dos Piaroa e do Noroeste Amazônico e na vida cerimonial do Brasil Central: não foi por análise estrutural que cheguei às minhas conclusões. A medida pela qual grupos Caribe dão expressão aberta no ritual ou na cosmologia para uma teoria que equaciona sociedade com diferença e perigo, com a reunião de forças culturais diferentes em origem, é um tópico a ser explorado. Se tal discurso não parece imediatamente evidente, devo não obstante acrescentar que a estrutura social Caribe em seu ideal de união endogâmica promove uma afirmação encoberta destes princípios que poderiam bem ser acentuados de forma mais óbvia em outras sociedades de florestas tropicais.
Os Piaroa e os índios das Guianas em geral fazem o seu melhor para que a organização do grupo local suprima as diferenças pelas quais a sociedade é composta, enquanto as culturas Jê, Bororo e do Noroeste Amazônico enfatizam-nas. O reconhecimento de tal variação entre os índios na sua exibição social da diferenciação cultural, ou, ao contrário, a supressão disto, leva a um longo caminho no entendimento da variação nas estruturas sociais dos grupos indígenas das Terras Baixas Sul-americanas. Entre os Jê, os Bororo e os índios do Noroeste-Amazônico, as forças da cultura são socialmente controladas, como evidenciado pelos princípios relativamente formais de organização social típicos dessas sociedades mencionadas acima. As estruturas sociais atomísticas usuais nas Guianas e a natureza informal dos agrupamentos sociais guianeses são, sugeriria eu, recém-saídas de uma filosofia do individualismo que é fortemente expressa por estes índios, uma filosofia que contrasta os índios das Guianas em geral com os vizinhos mais “sócio-centrados” do Sul, que colocam certos tipos de controle nas mãos da sociedade. Nas Guianas, tais controles são responsabilidade do indivíduo.
Para os Piaroa, e provavelmente para outros índios guianeses também, as forças da cultura, a-sociais na origem, são domesticadas no interior do indivíduo que tem a responsabilidade de controlar privadamente, dentro dele, todas as forças culturais que ele leva consigo. A ênfase Piaroa na responsabilidade do indivíduo sobre tais forças não é senão um aspecto de uma filosofia sutil de individualismo que é extrema em qualquer escala pela qual ela pode ser medida (ver Lukes, 1973): esta assume um papel excessivamente importante no pensamento social Piaroa, como suspeito ser, da mesma forma, o caso dos falantes da língua Caribe das Guianas que também enfatizam o auto-controle e a responsabilidade individual. Segundo Melatti (1979:67), entre os Krahó, falantes da língua Jê do Brasil Central, uma pessoa (tomada aqui em sua substância física), quando submetida a um elaborado ritual, recebe uma outra roupagem de identidade cultural que, por sua vez, fornece ao indivíduo identidade social. Como contraponto, entre os Piaroa, o social, a cultura e suas forças — incluindo o nome próprio — fazem parte de uma roupagem interna, cuja natureza é privada, envergonhada para revelar e domesticada por uma única pessoa. Como devo ilustrar abaixo, o controle social do “eu” (self) não é senão uma parte de um conjunto mais amplo de idéias que os Piaroa guardam sobre auto-identidade, a composição do “eu” (self) e a domesticação dos elementos (forças) de que é composto.
O controle social das forças da cultura: exemplos do Brasil Central e do Noroeste Amazônico
Etnógrafos das sociedades Jê setentrionais (Melatti, 1979; Lave, 1979; da Matta, 1979) observam que estes índios relacionam suas complexas instituições sociais a um complicado conjunto de crenças ligadas à transmissão-baseada- nos-nomes de identidades sociais dos doadores de nomes aos receptores de nomes. É por meio de tal transmissão de nomes, cada conjunto de nomes visto como um todo imutável, que a continuidade da sociedade é compreendida. Grupos portadores de nomes são descritos por estes autores como unidades coorporadas adquirindo, em sua perpetuação, não apenas conjuntos de nomes, mas também ritos, parafernália ritual e locações de grupos rituais (ver Overing Kaplan, 1981). Em outras palavras, os conjuntos de nome dividem entre si os recursos escassos da sociedade que são, eu diria (tomando a evidência acentuada no caso Bororo), as forças da cultura: forças que permitem a saúde, a riqueza e a fertilidade da terra e da comunidade, e, neste sentido, forças doadoras de vida (e destruidoras de vidas) do mundo. Para os Jê setentrionais, a transmissão do nome carrega consigo a transmissão da afiliação cerimonial, o conhecimento esotérico e os direitos e obrigações rituais: em sua aquisição, o nome fornece ao indivíduo uma identidade social e, assim sendo, transforma-o em membro de um grupo social que possui uma porção das forças da cultura disponíveis no mundo.
A observação de longe a mais clara sobre o controle social das forças culturais nas sociedades do Brasil Central foi dada por Crocker (1979) sobre os Bororo. A sociedade Bororo, como representada na aldeia, é composta de metades exogâmicas, cada qual com quatro “matri-clans” que permanecem em ordem espacial fixa, distanciando-se umas das outras ao redor do círculo da aldeia. A resultante divisão da aldeia em oito partes corresponde à divisão em oito seções das forças do cosmos. Todos os nomes das coisas do universo estão divididas entre os oito matri-clans que possuem como propriedade de clã um oitavo dos nomes das coisas no mundo e sua força, o aroe corporado, ou “essência categórica” de cada elemento possuído. Na topografia do mundo subterrâneo, o mundo dos aroe, todas as “entidades totêmicas” (sua força?) e os membros mortos de um clã singular vivem juntos na clareira geográfica alocada por aquele clã, um arranjo espacial que é replicado na aldeia. Assim, as forças da cultura, os recursos escassos possuídos por cada clã, têm sua fonte em baixo da terra. A mais valiosa riqueza do clã, suas próprias “representações dos espíritos”, são dadas como presentes aos clãs da metade oposta para serem performatizados pelos seus membros. Cada clã deve realizar sua responsabilidade categórica e ritual em relação aos outros clãs, representando uma das oito categorias pelas quais o universo é classificado.
Como é verdade para os grupos portadores de nomes Jê e para os clãs Bororo, o sib Pirá-Piraná do Noroeste Amazônico também controla os recursos rituais e seu próprio conjunto de nomes pessoais (Hugh-Jones, C., 1979; HUgh-Jones, S. , 1979). Como com os Bororo, as forças da cultura possuídas socialmente — por cada sib — têm sua fonte nas profundezas da terra, onde estão alojadas em “casas de despertar”, as casas de pedra dos sibs localizadas no mundo subterrâneo de onde as almas do novo nascido vêm e para onde vão as almas dos mortos. É no contexto da propriedade por cada clã de seu próprio estoque de nomes pessoais, reciclados em cada geração alternativa juntamente com almas que vivem na “casa de despertar” do clã, que podemos parcialmente entender o puzzling hallmark das sociedades do Noroeste Amazônico: em exceção dos Cubeo, os índios do Noroeste Amazônico casam-se idealmente exogamicamente com seu próprio grupo linguístico, sendo a língua de uma pessoa herdada de seu pai. Christine Hugh-Jones acrescenta (1979) que a língua deveria ser considerada como parte da propriedade do grupo de descendência, juntamente com a parafernália ritual. Sendo assim, cada grupo exogâmico - um conjunto de sibs que descende de uma anaconda ancestral e que tem a mesma filiação linguística - tem seu próprio estoque de nomes das coisas no mundo. O aroe corporado, tótens nomeados, de um clã Bororo compreende um oitavo do universo, enquanto entre os índios do Noroeste Amazônico, cada grupo exogâmico “possui” um vocabulário especial idiossincrático a si mesmo que cobre todos os ítens no mundo. Pode bem ser que o controle sobre um conjunto específico de nomes para coisas imponha para estes índios um poder particular sobre essas coisas ou um acesso à sua força (ver Overing Kaplan, 1981).
Christine Hugh-Jones também nos conta (1979) que é geralmente assim entre os índios do Noroeste Amazônico para o casamento ser explicitamente exogâmico não somente em relação ao grupo linguístico e de linhagem, mas também para a associação de habitat, uma identificação conferida pelo pertencimento ao sib e explicada pelos mitos de origem. No tempo mítico, o sol primal deu luz a três anacondas, associadas respectivamente com os domínios do céu, da terra e da água, e que são os ancestrais dos três grupos exogâmicos intercasáveis. Por meio do intercasamento de membros destes grupos, a sociedade veio à existência, cada grupo tendo origem nas fontes do poder advindas de diferentes domínios cósmicos. A distinção entre habitats cósmicos maiores, e as forças associadas com cada um, torna-se ao menos para alguns índios do Noroeste Amazônico uma distinção radical entre igualdade e diferença, fornecendo a língua para a discussão da identidade e diferença em relações sociais, e como tal tem um grau gritante de força classificatória no ordenamento da troca matrimonial e da vida ritual do Vaupés.
Nas sociedades do Noroeste Amazônico, aqueles do mesmo grupo exogâmico são identificados ao habitat de domínio particular, enquanto afins são associados a um outro. O fato da semelhança e da diferença serem expressas na língua do domínio do habitat sugere o reconhecimento claro de um controle, de base econômica, sobre forças. A cosmogonia Piaroa, ao contar sobre a criação do mundo, a origem da cultura e os elementos naturais da terra, conta também das batalhas que ocorreram no despertar de tais criações entre os dois grandes demiurgos do tempo mítico, afins um ao outro, sobre os elementos de forças dos domínios de habitat, cada qual respectivamente responsável pela criação, e então, pela apropriação. Cada um desejava o controle sobre as forças do outro, bem como a apropriação do domínio do outro. Na cosmogonia e teogonia Piaroa, há um reconhecimento explícito dos sérios perigos ao homem social do poder que tenta se apropriar dos produtos do universo, pois é um poder que rapidamente se torna coercitivo, violento e incontrolado na sua expressão. Ao mesmo tempo, como no Noroeste Amazônico, a cosmogonia associa afinidade à diferença, diferença em fonte de origem e em tipo de poderes adquiridos. A mensagem mítica é que a interação de tais diferenças, enquanto um pré-requisito para a vida social, é potencialmente e altamente perigosa para esta: é um perigo que emerge quando a reciprocidade entre afins permanece incompleta (p. e. via roubo de um pelo outro, via incesto) e pode ser apenas evitado por meio da expressão cuidadosa da reciprocidade entre eles. Os perigos da afinidade são tão grandes que os Piaroa suprimem linguisticamente e socialmente uma classificação que colocaria ênfase nas diferenças subjacentes e necessárias para a relação afim e, desta forma, também para a ordem social. Assim, entre os Piaroa, não há associação simples de uma classificação de habitats significantes com regras de casamento e identificação grupal: a classificação dos domínios e suas forças tão importantes para a cosmogonia não é reprojetada sobre o sistema matrimonial, tampouco fornece um meio de identificar grupos sociais.
Os Piaroa, assim como as culturas do Noroeste Amazônico, dão muita ênfase nos casamentos dos primeiros conjuntos de pessoas; pois é por meio destes intercasamentos dos primeiros homens e mulheres Piaroa, cujas origens se deram no interior dos seus lugares separados de criação “acima” e “abaixo” da terra, que a sociedade veio a ser, e por meio da qual todos os Piaroa se tornaram hoje cognatas. Entretanto, o pertencimento clânico de um indivíduo não o obriga, de forma alguma, nesta vida. Seu clã é sua origem e a casa para a qual ele voltará após a morte. Os Piaroa acreditam que no pós-vida, os membros de cada clã vivam juntos em um estabelecimento espacialmente separado de todos os outros clãs - separado dos afins, dos animais, de todos os seres diferentes de si. Conceitualmente, trata-se de algo semelhante à terra Bororo de aroe e às “casas de despertar” dos Pirá-Piraná, mas ao contrário dos Bororo e das casas clânicas do Noroeste Amazônico, abaixo da terra os clãs do pós-vida Piaroa são casas sem qualquer cultura (ta’kwarü). Portanto, nenhuma força de vida nem de cultura pode ser deduzida pelo Piaroa vivo de sua fonte de origem; nada pode vir naturalmente a ele, pois trata-se de um lugar desprovido de poder. Da mesma forma, para os Piaroa, as distinções espaciais do pós-vida e da criação são acentuadamente não replicadas na vida social onde, por meio de intercombinações, os clãs perderam completamente sua distintividade espacial e social.
A classificação de habitats significantes é usada politicamente, onde as distinções de diferença essencial são ativamente expressas por competidores políticos para estruturar suas batalhas individuais. Antes de discutir a supressão, na vida social Piaroa, da diferença, que apesar de suprimida é necessária à ordem social, e à sua expressão no reino do político, devo descrever brevemente aspectos da cosmogonia Piaroa, visando esclarecer a recente discussão (ver Overing, “The paths of sacred words”, apresentado no seminário “Xamanismo nas Terras Baixas Sul-Americanas” no 44o. Congresso Internacional de Americanistas, 1982, em Manchester, para um relato detalhado tanto sobre a cosmogonia quanto sobre o sistema clãnico Piaroa).
Cosmogonia Piaroa: violência e caos primeiros
Ricoeur nota em seu trabalho, The symbolism of evil (1969:178) que “o mal é tão velho quanto o mais velho dos seres; o mal é o passado do ser”. Como nos mitos das civilizações antigas a que Ricoeur se refere, a mitologia Piaroa também conta de uma violência de poder que está inscrita na origem das coisas; trata-se de um princípio de violência que estabiliza enquanto destrói (ver Ricoeur, 1969:182-3). Os poderes incontrolados e plenos envolvidos no trabalho da criação são provados demasiado destrutivos, selvagens e venenosos para permanecerem livres como forças ilimitadas dentro de um mundo social. Para que a ordem criada por eles permaneça intacta, esses poderes possantes, ao final do tempo mítico, foram banidos do mundo do social para outros mundos onde estão agora instalados sob segurança relativa de forma separada da sociedade, onde sua maldade, ou sua potencialidade para o mal, pode ser mais facilmente controlada.
Antes dos mundos celestial e terrestre serem criados, todas as fontes de poder do universo estavam instaladas abaixo da superfície da Terra, sua face ainda não construída. No tempo mítico, na medida em que estes poderes subterrâneos se tornaram, vagarosamente, desgovernados na Terra, era a sua força a responsável pela criação de todos os elementos e seres do universo superficial e pelo conhecimento que permitia alguma forma de existência. A maioria dos poderes responsáveis pela forma e vida da superfície terrestre vinha da terra subterrânea de Ofo/ Da’a, uma quimérica Tapir/Anaconda. Foi por meio de dois grandes míticos afins, Kuemoi e Wahari, cujos nascimentos foram o feito de Ofo/ Da’a e cujos poderes que ele lhes deu, que a maioria dos elementos do mundo dos Piaroa foi criado. Os poderes que o Tapir/Anaconda transmitiu a estes dois demiurgos eram distintos em origem e opostos em resultado. Estas eram forças que Kuemoi, mestre do domínio aquático, trazia, do lugar de seu nascimento, à superfície da Terra em uma cultura aquática (p. e., o cultivo de plantas, o fogo de cozinhar, ornamentos, poderes de caça-curare, pós de caça de feitiçaria, venenos de peixe, cachorro caçador); enquanto Wahari, o mestre da selva, criava a topografia da Terra, seus elementos naturais (suas montanhas, suas rochas, seus sistemas fluviais, suas quedas). As forças do Tapir/Anaconda associadas com estes dois conjutos de criação, aquele da cultura oposta àquele dos elementos naturais da Terra e seu céu, eram diferentes em qualidade, se não em força. Os poderes de Kuemoi eram venenosos e malignos em sua selvageria, enquanto os poderes de Wahari eram relativamente controlados e benevolentes em sua força. A oposição entre selvageria e controle se encontra refletida no tipo de seres, cada qual responsável pela criação, na medida em que o tempo mítico prosseguia — seres que não eram senão aspectos de seus respectivos poderes e, como tais, ajudantes nas contínuas batalhas de poder, praticadas entre estes dois mais poderosos feiticeiros do tempo mítico.
A fonte da cultura na Terra, cultura nas suas origens, era então das forças venenosas e selvagens de Kuemoi, dadas a ele na forma de alucinógenos venenosos pelo seu pai, Ofo/ Da’a. Embora mestre da cultura e do cultivo, Kuemoi criou todas as cobras venenosas e insetos do mundo. Ele envenenou todas as grandes formações rochosas e as correntes. Ele é o avô das feridas, o pai do peixe mordedor e venenso e criador do sapo venenoso. Ele é também o avô do sono e o mestre da escuridão. O crocodilo, o cayman e o peixe perigoso são da família de Kuemoi, como o são também o esquilo e o abutre, o primeiro anuncia um perigo e o último, é um predador de animais selvagens. Em suma, todos os animais que mordem e que apresentam perigo e todas as coisas venenosas neste mundo, sendo classificados como “animais selvagens” (dea ruwa), uma categoria que inclui os próprios Piaroa, são da família ou da criação de Kuemoi e são classificados juntos como “pensamentos de Kuemoi”. Assim, na cosmogonia Piaroa, a cultura é do poder incontrolado e venenoso de Kuemoi e tem sua fonte na loucura de Kuemoi. Como provedor de cultura àqueles da selva (p.e. os Piaroa e Wahari antes deles), seu “presente” é venenoso, tão selvagem quanto os seus próprios poderes — loucos — de feitiçaria. Mesmo seus filhos, as plantas do jardim, são venenosos.
A cultura, feita dos poderes venenosos e loucos da escuridão é parcialmente domada pelas forças da luz que criaram os elementos naturais (inanimados) do universo. Wahari, genro de Kuemoi e mestre da selva, gasta muito do tempo mítico não só tentando roubar cultura de Kuemoi, mas também para transformar seus estragos em forças mais controladas e mais eficazes para seu uso seguro pelos seres da selva. Como o poder de Kuemoi está fora de controle, Wahari representa o poder sob controle. A força de seus atos espetaculares de criação foram derivadas de um alucinógeno não-venenoso dado pelo Tapir/Anaconda enquanto habitava a casa subterrânea de seu nascimento. Como criador da maioria das características da Terra, Wahari foi chamado de o “mestre do mundo”. Enquanto Kuemoi era o mestre das trevas e da noite, Wahari era o mestre da luz — seu poder colocava o sol no céu. Ele era também o mestre dos animais selvagens, então humanos na forma, e mestre de sua casa. Ele criou por meio de seus pensamentos todos os animais rupestres e pássaros da selva; ele também criou os Piaroa do peixe que ele pescou nos seus lagos de origem. Ele era um voador: sempre transformava-se em “passáros cantadores” e águia (hawk), produtos de seu próprio pensamento, para fazer o fantástico, para voar grandes distâncias sobre a Terra e dentro dela, assim, em contraste com Kuemoi, que também se transformava em aspectos de seus próprios pensamentos (p.e. os predadores, jaguar e abutre).
Como grandes feiticeiros, Kuemoi e Wahari representam o fracionamento na Terra dos poderes de Ofo/Da’a, o deus supremo Tapir/Anaconda, cuja casa se encontrava abaixo da superfície terrestre. Wahari casou-se com a filha de Kuemoi. Por meio do intercasamento destes dois grandes poderes, opostos pela sua associação com distintos domínios do cosmos — sua origem dentro d’água e dentro da terra —, relações sociais vieram à existência e a fertilidade do deus Tapir/Anaconda passou a ser expressa na Terra como sociedade, ou, mais precisamente, conduziu à emergência do estado social em tempos míticos. Entretanto, a relação afim então estabelecida permaneceu desleal, manifestando uma não-reciprocidade gritante. Como mencionado acima, a maioria dos mitos Piaroa relata os duelos enfrentados entre esses dois demiurgos sobre os elementos, as forças e os domínios que o outro era responsável pela criação e controle. Kuemoi, o mestre da água, queria como comida animais selvagens, enquanto Wahari estava sempre esperto para escapar das armadilhas venenosas que Kuemoi tramava para ele e sua família. Por sua vez, Wahari, queria cultura. Foi somente com seu casamento com Maizze, a filha de Kuemoi, que ele recebeu o presente de plantas cultivadas e seu processamento. Depois de tê-la desposado, Wahari dispendeu muito do tempo mítico restado roubando artefatos culturais de Kuemoi e tentando domá-los para seu uso próprio. No final, ele roubou artefatos culturais e rituais, possuídos pelos “pais” dos animais selvagens.
Toda a cultura que Wahari recebeu ou roubou é agora dada aos Piaroa, uma de suas próprias criações; mas, hoje, eles não mais recebem forças da cultura de Wahari. No final do tempo mítico, Wahari matou Kuemoi em retaliação por invasões canibalísticas em seu domínio na selva. Wahari foi então morto por membros de sua própria família em vingança pelos seus pecados a-sociais, especialmente pelo incesto com sua irmã, Cheheru. (Kuemoi reincarnou na Terra como anaconda, e Wahari como tapir). Ambos, então, foram mortos por sua irresponsabilidade social. Ambos perderam os presentes dados pelo seu criador Tapir/Anaconda — as forças selvagens da cultura e as forças para domesticá-la — para outros seres, deuses que agora vivem uma existência etérea sob as quedas d’água de suas casas celestiais. É destes deuses que os Piaroa recebem os conhecimentos e os poderes da cultura. Estas forças fortes estão hoje instaladas fora do mundo terrestre, onde a vida social é levada — forças demasiadamente destrutivas — de forma selvagem e venenosa para permanecer livre como as forças ilimitadas dentro do mundo social. Os poderes de Wahari e Kuemoi vivem no interior de caixas de cristal dos deuses, que agora possuem estas forças.
As lições do passado mítico ilustram que nenhuma vida social ordenada seria possível se tais forças vagassem livremente. Sua existência desregrada contínua encorajaria, como feito no tempo mítico, atos de canibalismo, incesto, loucura e furto — todas compulsões sociais simulando as regras de reciprocidade (e resultando em tranquilidade) a partir das quais, na visão Piaroa, para a sua continuidade, a sociedade é dependente. Como será discutido abaixo, o mais apropriado, ou melhor dito, a relação de troca segura é aquela reciprocada, e é apenas por meio da reciprocidade repetida que o sério perigo instrínseco à relação afim (in-law) pode ser contornado, que o perigo da diferença essencial pode ser negada. Por outro lado, para que a sociedade continue, as forças da cultura devem ainda ser parte dela, tanto para lhe dar vida, como para protegê-la.
O indivíduo e a domesticação da cultura
Vimos antes que nas sociedades Bororo e do Noroeste Amazônico, as forças culturais pertencem a clãs e sua fonte permanece propriedade clânica, onde está instalada abaixo do Terra no interior das casas primordiais de cada clã. Em contraste, entre os Piaroa, as forças da cultura não pertencem a grupo social algum, mas aos deuses, e são trazidas de volta à sociedade por meio da iniciativa individual e a partir da responsabilidade do indivíduo. É dos deuses que as forças têm permissão para dar vida (ta’kwarü), a “vida dos pensamentos e da cultura”, ao mesmo tempo para o indivíduo que vive em sociedade e para a sociedade em si. Tais forças são trazidas à sociedade por meio da capacidade do xamã que domestica sua selvageria, por instalá-las no interior de suas contas de conhecimento, ou ajuda os outros a fazer o mesmo. A cultura deve ser domesticada dentro do indivíduo.
Os Piaroa em geral dão muito valor à habilidade de conduzir uma vida tranquila (adiupàwi). O primeiro ensinamento formal a que uma criança é submetida consiste em lições dadas pelo xamã de como viver tranquilamente com os outros: são lições sobre controle. Os Piaroa consideram tal treinamento como parte de um processo de “domesticação”. A criança deve adquirir cada vez mais responsabilidade pessoal (ta’kwakwomena) para suas próprias ações, ela deve controlar as forças da cultura na medida em que estas lhe são presentes. Conforme se cresce, deve-se decidir por si mesmo quantos e quais poderes — tais como caça, pesca, canto ou feitiçaria — se pode suportar das fontes indomesticadas dentro de si mesmo. Esses poderes são adquiridos por meio da liderança do xamã conhecedor que as apreende cautelosamente em seus vôos às casas dos deuses. Na medida em que o indivíduo cresce, ele recebe dos deuses uma quantidade maior de contas, sendo no interior dessas que os poderes da cultura levados são instalados e assim domesticados. O estado interior de alguém, com a minoria dos poderes incorporados, torna-se mais complicado conforme elementos externos o penetram tanto no seu desejo como na ausência deste (doença). A roupagem interior do xamã é claramente elaborada especialmente, e desta forma é ele que deve exibir o maior controle: o controle apropriado das emoções implica apaziguamento das forças culturais que habitam o interior de uma pessoa. Sentimentos viciosos, intentos malignos e ciúmes são aborrecedores, mas não considerados prejudiciais no homem que tomou para si poucos poderes dos deuses; enquanto essas características em um xamã, consideradas como resultado da carência de domesticação apropriada dos poderes potencialmente selvagens e malignos, são compreendidas como altamente perigosas ao bem-estar da sociedade, uma indicação do poder cultural incontrolado no seu interior que pode matá-lo, causar desastres naturais, prevenir o aumento de animais e causar a infertilidade da terra.
As forças da cultura, inseridas em alguém, não impõem uma propriedade do seu produto, mas impõem a habilidade ou a capacidade de usá-lo.O xamã enquanto líder político, e como aquele que tem dentro dele domesticada uma quantidade de força de cultura maior que de qualquer homem comum, ainda não tem tal conotação de propriedade. Hoje, os mestres da terra e da água possuem os domínios da água e da selva. Eles não são Wahari e Kuemoi, mas o espírito da selva, Re’yo, e o espírito da água, Ahe Itamu, dos quais adquirem seu controle sobre esses habitats no fim do tempo mítico. Estes dois espíritos guardam seus respectivos domínios, os protegem, fazem férteis os seus habitantes, e punem aqueles que ameaçam suas formas de vida. Eles também cooperam como guardiães da comida do jardim. O ponto relevante é obviamente que os habitats de terra e água, e seus produtos, não são possuídos por homens. Tal controle não é parte do escopo do poder político na sociedade Piaroa, um controle que deveria ser visualizado pelos Piaroa como poderes realmente muito perigosos. O líder xamã não tem poder para ordenar o trabalho de outros. Durante as grandes cerimonias que ele apresenta, ele convida os outros a trabalharem para ele e para a comunidade, ele nunca ordena tal trabalho. É sua obrigação controlar e lutar contra as forças selvagens da cultura que adentram a sociedade, mas não controlar (ao menos abertamente) o comportamento social de indivíduos de sua comunidade; cada qual devendo administrar seu próprio controle pessoal, um assunto privado em que se deve manter domesticadas as forças da cultura as capacidades para esta no interior de si mesmo.
Política, afinidade e classificação mítica
A mensagem mítica, e os Piaroa entendem isso neste sentido, equaciona sociedade e sua possibilidade com a afinidade, com a combinação de ítens diversos. A sociedade existe apenas por meio da interação de entidades e forças que são potencialmente e altamente perigosas umas às outras: a relação entre doadores e receptores de mulheres é inerentemente ameaçadora, uma vez que os afins “incorporados” (in-laws) são estranhos que podem te comer ou te roubar. Ora, o perigo oferecido por esta relação de afinidade (in-law relationship) só pode ser apaziguado através da reciprocidade apropriada. Reconhecendo que a sociedade pode existir apenas por meio da interação das diferenças, de seres distintos uns dos outros, e entendendo que tal mistura traz bastante riscos, os Piaroa despendem uma boa porção de energia social estrutural no mascaramento dos princípios de diferença visando a segurança adquirida. Mas aqui, a cautela está na ordem, pois esta é uma observação que, de forma alguma, dá conta do comportamento de todos os Piaroa: as relações afins são veladas no interior da casa comunal (itso’de), e acentuadas na relação entre casas no interior de um território político (Overing Kaplan, 1984).
Mantendo a visão de que a sociedade pode vir a ser somente por meio da coexistência de forças dessemelhantes, a relação jural na sociedade Piaroa é com os afins (in-laws) e as relações políticas são expressas no idioma da afinidade (Overing Kaplan, 1975). A competição política se dá por uma categoria afim, mas jamais com uma classificada como “pai”, “irmão” ou “filho”. Como escrevi em outro lugar (1975), um homem Piaroa se estabelece como afim — na categoria de “sogro”, “cunhado” ou “genro” — em relação à maioria de homens no interior de seu território. Classificando-os de tal modo, ele pode competir com eles como xamãs, bem como negociar casamentos para seus filhos ou germanos. Em batalhas políticas, dentro do território, símbolos cosmológicos de poder fornecem as condições semânticas por meio das quais os competidores estruturam sua competição. Como xamãs eles podem, através do poder de alucinógenos, transformarem-se, como fizeram os demiurgos no tempo mítico: eles também podem se transformar em águias, anacondas, cobras, jaguares, trovões, crocodilos e abutres. Cada tipo de transformação distingue um tipo e ordem específicos de poder. Algumas transformações são de Kuemoi, e como tais são manifestações de poder que são ao mesmo tempo malignas e descontroladas. Outros são transformações de Wahari, aquelas cujo poder é aquele do vôo, e não do comer os outros. Em competição política, dá-se a seu componente — “cunhado”, “sogro” e “genro” classificatórios — os atributos de Kuemoi. Seu poder é poder fora de controle: ele se utiliza de alucinógeno venenosos; ele se transforma em anaconda, tornando-se assim Kuemoi — como sua reincarnação na Terra; ou, ele se transforma em jaguar, que é ao mesmo tempo o animal de estimação de Kuemoi e sua manifestação como caçador. O oponente é um feiticeiro que envia uma doença fatal, tornando na sua ação canibal, tal como era Kuemoi: doença é sempre considerada pelos Piaroa como um processo de ser comido (ver Overing Kaplan, 1982).
Tal uso da classificação mítica na estruturação das batalhas de poder entre casas dentro do território não implica um ordenamento que é metafórico em natureza, mas antes fala de estados metafísicos específicos. Sob efeito de drogas alucinógenas, um xamã vê-se transformado em um belo Wahari, e vê seu oponente transformado em Kuemoi. O xamã entende tais visões como verdade literal, e age com eles desta forma. A metáfora se converte em uma ontologia que explicitamente diz que o “fantástico” é verdadeiro.
Tal linguagem — e transformações — tirada das classificações dos elementos e forças do cosmos tal como existiam no tempo mítico, não devem ser usados para estruturar relações dentro da casa: não se deve jamais frisar a diferença essencial de um afim, uma vez que se vive com ele. Se a competição política na casa torna-se séria em natureza, a casa imediatamente sofre uma fissão. Assim, é o afim potencial que é Kuemoi, o canibal, o portador de forças culturais indomadas. Ele é aquele com quem nenhuma troca matrimonial foi contratada, ou com quem os laços de afinidade concreta são fracos. O doador da doença, o canibal, é aquele com quem se está em uma relação de reciprocidade incompleta ou, ainda, reciprocidade negativa. A relação entre afins concretos que vivem juntos na casa não deve ser modelada a partir da relação que vigia na sociedade mítica entre dois arquetípicos afins que eram inimigos uns dos outros (ver Overing Kaplan, 1984).
Os Piaroa classificam suas relações com outros em um continuum que se move do perigo à segurança, e da diferença à identidade. Esta não é uma classificação tão incomum, uma escala crescente de empatia social, mas há alguns aspectos interessantes pertinentes a esta discussão da sua classificação dos outros por categorias que denotam vários graus de distância e proximidade social. As relações mais distantes e perigosas são aquelas com animais e membros de outras tribos, com quem os Piaroa nutrem uma relação de predação: o perigo é o da morte, tanto para os Piaroa, através de suas ações, quanto para os animais e estrangeiros (via feitiçaria). Porque eles têm o direito de matar os membros de ambas as categorias e enfraquecê-los os Piaroa estão em uma relação de não-parentesco com eles. Eles não são chamados “afins”. A maioria das mortes entre os Piaroa são causadas por feiticeiros de outras tribos, e a vingança Piaroa a tais mortes através daquilo que os jovens se referem como “a bomba Piaroa”, uma mágica de vingança poderosa combinando venenos potentes e certas partes da anatomia da vítima que são queimadas juntas e enviadas pela fumaça e pelo canto ao território do feiticeiro, onde mortes em massa são o resultado. A relação, em excessão daquela com o parceiro ocasional de comércio, é de uma reciprocidade negativa gritante.
Menos perigosas, mas ainda ameaçadoras, são as relações com membros de outros territórios Piaroa. Aqui, não há uma relação natural de morte ou de transmissão de doença; por sua vez, o perigo é de morte social, permanecendo a relação sob reciprocidade negativa. Viaja-se a outros territórios e leva-se comidas, ou pior, mulheres, que não podem ser reciprocadas, e então abandona-se o lugar. Em exceção do comércio formal, as demandas de reciprocidade não podem ser encontradas. Para não enfrentar o problema, os indivíduos com quem alguém interage são sempre classificados como “parentes”, e não “afins”, uma classificação que carrega a conotação da extrema segurança meio às ameaças de uma terra estranha, da comida estranha e das pessoas estranhas.
No território, onde homens classificam mais homens de outros grupos locais como afins, há sempre a potencialidade de adquirir com eles a relação de reciprocidade, de estabelecer uma relação confiável de troca. Tais transações com afins potenciais são por definição de reciprocidade incompleta, e o perigo primário é que tais relações possam se degenerar no equivalente às relações intertribais e territoriais, relações de reciprocidade negativa.
As relações mais seguras são, claramente, aquelas no interior do grupo local de alguém, tanto com afins quanto com parentes que lá vivem. A casa, não obstante, não pode existir como unidade autônoma; para o poder xamânico e para os cônjuges, deve depender de outras casas, apesar de uma ideologia que preza por sua autonomia. A classificação de todos os homens dentro do território como afins pode ser parcialmente entendida como reconhecimento dessa dependência: é apenas por meio da afinidade que a reciprocidade pode ser ativada. Vemos, pois, que no continuum que se move do perigo à segurança e da diferença à identidade, também ao mesmo tempo se move da reciprocidade negativa à reciprocidade potencial e finalmente à reciprocidade completa, sendo a intensidade da última relação tão extrema que quase se aproximou da empatia, ou em termos de Sahlins (1972), “reciprocidade generalizada”. Segurança com o afim concreto é parcialmente adquirida por meio de reciprocidade apropriada, e é por esta razão que a troca matrimonial entre os Piaroa é firmemente baseada sobre um princípio de reciprocidade levado adiante através da repetição serial e múltipla de laços afins.
O casamento endogâmico e a afinidade múltipla (ver Overing Kaplan, 1981)
Para os Piaoa, a sociedade passa a existir pela associação de elementos dessemelhantes: tanto a história mitológica quanto a ordenação cosmológica dão esta mensagem (ver acima a discussão dos clãs mortuários, onde não se vive nem com afins, nem com cultura). É este entendimento sobre a natureza das coisas no mundo social e cultural que os Piaroa fazem seu melhor para ignorar nas suas relações dentro da casa comunal. Se os Piaroa usassem a classificação mítica do domínio da terra e da água como linguagem de ordenamento de suas trocas matrimoniais — como no contrário se dá entre os índios do Noroeste Amazônico — ou mesmo a distinção “acima” ou “abaixo” subjacentes ao seu sistema de metades, eles estariam também afirmando abertamente que os afins reais são criaturas essencialmente diferentes umas das outras e como tais, podem devorar-se mutuamente. Assim, para ignorar tais divisões há um método de burlar os perigos da diferença, de mascarar os elementos e forças pelos quais a sociedade é composta, ou, se desejar, qualquer dualismo no qual deve consistir. Os Piaroa não desejam aceitar as implicações disponíveis do reconhecimento da diferença essencial, sendo por meio de seu ideal muito forte de casamento endogâmico que eles são capazes de entender a necessidade da diferença essencial à vida social no grupo local. O dispositivo mais óbvio que eles usam, ignorando a diferença em relação à sua finalidade que é a segurança, é o casamento com um aparentado próximo ou ao menos bem conhecido de dentro da casa; e este ideal de endogamia de grupo local, tão enfatizado pela maioria dos índios guianeses, não é senão o outro lado da moeda de seu medo igualmente acentuado do estranho (ver, por exemplo, Rivière, 1969a; Henley, 1979).
Escrevi em outro lugar (1973, 1975) que as maiores casas entre os Piaroa, nas quais habitam quase todos da parentela conjugal de cada membro, fazem, ao menos em um nível ideológico, aproximar o ideal de uma parentela endogâmica. A grande ficção é, claramente, que a sociedade como grupo endogâmico isolado que se replica através do tempo se torna composta da associação de ítens “similares”, consanguíneos que são seguros uns aos outros, e não perigosos, como os “diferentes” afins. Aqui, temos com os Piaroa, uma interessante dialética entre sociedade como um mundo ideal de parentelas endogâmicas e sociedade que inclui o todo mais amplo: afins potenciais e oponentes políticos.
O casamento endogâmico não implica somente segurança, mas também a manutenção de todos em casa com aparentados próximos, tornando fluida a distinção entre “parente” e “afim”; trata-se do casamento reciprocado, pois por meio deste os laços prévios de afinidade no grupo são reafirmados. Na teoria Piaroa, quanto mais trocas matrimoniais decretadas entre dois afins, mais segura a relação e mais unificado o grupo como unidade de cognatas. É um tipo de troca matrimonial frequentemente encontrada nas Guianas (ver Rivière, 1969a; Henley, 1979; Arvelo-Jiménez, 1971), em que a viabilidade da relação de afinidade, a aliança política e a unidade do grupo são correlacionados com o número de trocas matrimoniais estabelecidas entre homens dentro do grupo local. Teoricamente, a reduplicação de qualquer laço de afinidade dentro do grupo — como quando um conjunto de irmãos se casa com um conjunto de irmãs — é ao mesmo tempo um casamento replicado e reciprocado, do ponto de vista do grupo como um todo. Dentro de um grupo endogâmico, o laço matrimonial não precisa ser diretamente reciprocado como na troca de irmão/irmã: qualquer casamento dentro do grupo é ao menos indiretamente reciprocado, tal como na troca indireta, na medida em que todo homem dentro do grupo recebe uma esposa de dentro deste. Em um certo sentido, através do casamento endogâmico, noção cara de troca matrimonial, e seus perigos, foram apagados. Ironicamente, é por meio da troca matrimonial, especialmente aquela redecretada de tempos em tempos dentro da casa, o presente continuamente retornado, que as diferenças são anuladas e a segurança adquirida. Se visualizarmos a reciprocidade, como faz Lévi-Strauss (1969:84), como o meio mais imediato de integrar a oposição entre o eu e os outros, os Piaroa por meio do casamento endogâmico, têm levado este princípio ao seu extremo lógico, uma vez que aí o eu e os outros não são apenas unificados, mas tornados todos um só tipo.
Assim, a sociedade é para os Piaroa equacionada com a afinidade, a conjunção de ítens diversos (afins) e forças culturais. A endogamia se torna uma filosofia da sociedade para eles, um “meio caminho”, que supera até um certo ponto os perigos do estado social e o ditado que acentua que a sociedade só pode existir pela conjunção de elementos perigosos e diferentes. Em suma, a endogamia como ideal expressa o medo Piaroa em relação ao estado social, tornando-se então um princípio subjacente à sociedade suspeita de sua própria natureza social.
Conclusão: estruturas elementares de reciprocidade (ver Overing Kaplan, 1981)
Acredito ser possível afirmar, em geral para os índios da floresta tropical, que suas noções de reciprocidade apropriada e desapropriada impõem uma filosofia do relacionamento com coisas que são diferentes. É desta perspectiva que podemos chegar a um mais claro entendimento da proliferação dos dualismos dentro dessas culturas, não importando o que eles contêm ou como eles são expressos. Temos entre os Piaroa a expressão cosmológica de desafio, que eu creio ser geral aos índios das Terras Baixas Sul-americanas e de considerável importância para um entendimento de certas ambiguidades no ordenamento dos seus universos sociais, o que pontua a necessiddae das diferenças à vida social — em última instância, diferenças nas forças da cultura; mas trata-se de um mundo, onde a conjunção de tais diferenças implicam medo, enquanto a convivência de elementos e forças semelhantes implica segurança e não-sociedade, ou seja, uma existência a-social.
Tanto os Bororo como os Jê evitam os perigos da diferenciação cultural através de transações rituais elaboradas entre metades, por meio das quais “vias rituais” são estabelecidas entre grupos de nome (ver, por exemplo, Crocker, 1979; da Matta, 1979; Lave, 1979; Melatti, 1979). Através das inversões rituais comuns a estes sistemas, onde o “eu” se torna “outro” e o “outro” se torna o “eu” — onde o chefe de uma metade é escolhido pelo outro ou a representação ritual dos tótens de uma metade é encenada pelos outros —, a identidade e a diferença entre categorias culturais (e sociais) se tornam tão indistintas quanto por meio do casamento endogâmico das Guianas. Em cada uma destas sociedades, os princípios de troca são até certo ponto princípios metafísicos, em que a ênfase não é dada muito na obtenção de um tipo particular de formação grupal, mas na aquisição de relações apropriadas entre seres de categorias que são vistas como significativamente diferentes, necessários uns aos outros, para que a sociedade exista. Tais princípios de troca também expressam uma filosofia política específica que diz que homem algum, grupo algum, ou qualquer conjunto desses, pode exercer propriedade única sobre as forças das cultura.
Se as distinções expressas referidas à lógica classifcatória de nomes, aos atribtuos simbólicos de habitats cósmicos, ou, como no caso clássico do “parente” e “afim”, ou ao “casável” e “não-casável” como implicado por uma regra prescritiva de casamento, em cada exemplo, tais contrastes são empregados na elaboração de trocas que são claramente “elementares” na forma, mas uma elaboração que é em última instância cultural na derivação, e não social. J. C. Crocker comenta (1979:296-297), quando fala da elaboração de estruturas entre os Jê e os Bororo, que categorias encontradas em outras fontes de distinções que aquelas advindas de uma regra prescritiva de casamento, “podem possuir precisamente as mesmas implicações inexoráveis para a interação social que deve exprimir um modelo lógico como a mais rigidamente prescritiva “estrutura elementar”. Invés de “sistemas elementares de parentesco e casamento”, podemos falar mais genericamente de “estruturas elementares de reciprocidade”, e neste sentido tratar as sociedades indígenas das Guianas, sociedades do Noroeste Amazônico e do Brasil Central como alguns dos muitos exemplos de uma estrutura básica.
As implicações para a vida social indígena do ordenamento das estruturas elementares de reciprocidade é que a sociedade em si se torna uma lógica para a manutenção do balanço, uma relação apropriada entre ítens culturais no universo que permite a sociedade se perpetuar. A reciprocidade em si pode assim ser igualmente vista como um modo particular de auto-perpetuação, não de grupos — que podem impor o controle coercitivo tanto de pessoas como de recursos escassos —, mas de relações, uma perpetuação que se contrapõe ao desenvolvimento de tal controle.
terça-feira, 9 de junho de 2009
Traga sua contribuição
Pessoal, sugiro que quem tem material legal sobre as nossas temáticas, adicione um link no espaço de comentários. A Denise logo irá alimentar nosso esfomeado blog com os textos prometidos. Enquanto aguardamos podemos trazer idéias, textos ... tudo que possa colaborar para ampliação do nosso olhar sobre a Amazonia e seus "divíduos".
Grande abraço!
Grande abraço!
segunda-feira, 8 de junho de 2009
Em desenvolvimento
Olá pessoal!
Como foi prometido, aqui está o nosso blog - ainda em desenvolvimento pois, quero dar uma cara mais de acordo com o título que peguei emprestado do curso ministrado pela Denise. Aproveito este espaço para agradecer publicamente pelos bons momentos que passei no Ponto de Cultura e pelo aprendizado que foi de grande importância.
Além do blog eu criei uma lista de e-mail com os endereços de todos que estavam presente no último encontro. Se alguém souber o endereço eletrônico dos colegas que não estão na lista, por favor, passe pra mim (phoenix@seama.edu.br). Certo?
Por enquanto fica o meu abraço e o desejo de logo, logo estarmos por aqui construindo mais conhecimento a respeito das demandas indígenas.
Como foi prometido, aqui está o nosso blog - ainda em desenvolvimento pois, quero dar uma cara mais de acordo com o título que peguei emprestado do curso ministrado pela Denise. Aproveito este espaço para agradecer publicamente pelos bons momentos que passei no Ponto de Cultura e pelo aprendizado que foi de grande importância.
Além do blog eu criei uma lista de e-mail com os endereços de todos que estavam presente no último encontro. Se alguém souber o endereço eletrônico dos colegas que não estão na lista, por favor, passe pra mim (phoenix@seama.edu.br). Certo?
Por enquanto fica o meu abraço e o desejo de logo, logo estarmos por aqui construindo mais conhecimento a respeito das demandas indígenas.
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